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domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Líbia e o Imperialismo

Workers World

25/02/11

De todos os conflitos que ocorrem no Norte de África até agora e no Médio Oriente, o mais difícil de decifrar é o da Líbia.

Qual é o caráter da oposição ao regime de Kadafi, quem agora controla a cidade de Bengazi, no nordeste do país?

Será apenas coincidência que a rebelião tenha começado em Bengazi, a qual se localiza ao norte dos mais ricos campos petrolíferos da Líbia bem como próxima da maior parte dos seus oleodutos e gasodutos, refinarias e seu porto de gás natural liquefeito de petróleo (GLP)? Haverá um plano de divisão do país?

Qual é o risco de intervenção militar imperialista, a qual apresenta grave perigo para o povo de toda a região?

A Líbia não é como o Egito. Seu líder, Moamar Kadafi, não tem sido um fantoche do imperialista como Hosni Mubarak. Durante muitos anos, Kadafi esteve aliado a países e movimentos que combatiam o imperialismo. Ao tomar o poder em 1969 através de um golpe militar, ele nacionalizou o petróleo da Líbia e utilizou grande parte do dinheiro para desenvolver a economia líbia. As condições de vida do povo melhoraram radicalmente.

Por isso, os imperialistas estavam determinados a botar a Líbia abaixo. Os EUA em 1986 lançaram ataques aéreos a Trípoli e Bengazi que mataram 60 pessoas, incluindo a filha de Kadafi – o que raramente é mencionado pela mídia de aluguel corporativa. Foram impostas sanções devastadoras tanto pelos EUA como pela ONU a fim de arruinar a economia líbia.

Depois que os EUA invadiram o Iraque em 2003 e arrasaram grande parte de Bagdá com uma campanha de bombardeamento, em que o Pentágono chamou exaustivamente "pavor e choque", Kadafi tentou evitar a ameaça de outra agressão à Líbia fazendo grandes concessões políticas e econômicas ao imperialismo. Ele abriu a economia a bancos e corporações estrangeiras; concordou com exigências do FMI quanto ao "ajuste estrutural", privatizando muitas empresas estatais e cortando subsídios do Estado a necessidades como alimentos e combustível.

O povo líbio está sofrendo com uma inflação galopante dos preços e um grande índice de desemprego, que são uma das determinações que estão na base das rebeliões de outro lado é impulsionada e alimentada em decorrência da crise econômica capitalista mundial.

Não pode haver dúvida de que a luta que varre o mundo árabe pela liberdade política e a justiça econômica também tocou um ponto sensível na Líbia. Não há dúvida de que o descontentamento com o regime Kadafi está motivando uma parte significativa da população.

Contudo, é importante para os progressistas, saber que muitas das pessoas que estão se oportunizando e se apresentando no Ocidente como líderes da oposição é há muito tempo agentes do imperialismo. A BBC mostrou em 22 de Fevereiro filmes de multidões em Bengazi botando abaixo a bandeira verde da república da Líbia e substituindo-a pela bandeira do antigo rei Idris – que foi um fantoche dos EUA e do imperialismo britânico.

A imprensa ocidental baseia grande parte das suas reportagens sobre supostos acontecimentos, com base em informações fornecidas por grupos exilados, principalmente a Frente Nacional para a Salvação da Líbia (National Front for the Salvation of Libya), a qual foi treinada e financiada pela CIA estadunidense. Pesquise na rede nos buscadores o nome da frente mais CIA e encontrará centenas de referências.

O Wall Street Journal de 23 de Fevereiro escreveu em editorial que "Os EUA e a Europa deveriam ajudar os líbios a derrubarem o regime de Kadafi". Não há qualquer conversa nas salas das administrações ou nos corredores de Washington a respeito de intervir para ajudar o povo do Kuwait ou da Arábia Saudita ou do Bahrain a derrubarem seus governantes ditatoriais. Mesmo com todos os falsos elogios às lutas de massas que agora sacodem a região, isso seria impensável. Em relação ao Egito e à Tunísia, o imperialismo está movendo todas as alavancas que podem para tirar as massas das ruas.

Tão pouco houve qualquer conversa de intervenção dos EUA para ajudar o povo palestino de Gaza quando milhares foram massacrados e morreram por ataques e bloqueios, bombardeados e invadidos por Israel. Exatamente o oposto. Os EUA intervieram para impedir a condenação do Estado colonizado por sionistas.

O interesse do imperialismo na Líbia não é difícil de descobrir. Em 22 de Fevereiro passado a Bloomberg.com escreveu: a Líbia é o terceiro maior produtor de petróleo da África, é o país do continente que tem as maiores reservas auditado — 44,3 bilhões de barris. É um país com uma população relativamente pequena, mas com potencial para produzir enormes lucros para as companhias de petróleo gigantes. É assim que os super ricos a encaram e é o que está por trás da sua apregoada preocupação com os direitos democráticos do povo da Líbia.

As concessões obtidas de Kadafi não foram suficientes para os barões imperialistas do petróleo. Eles querem um governo sob a sua tutela total, tudo do bom e do melhor. Eles nunca esqueceram que Kadafi derrubou a monarquia e nacionalizou o petróleo. Fidel Castro, em Cuba, na sua coluna "Reflexões" registra o apetite do imperialismo por petróleo e adverte que os EUA estão a lançando as bases para a intervenção militar na Líbia.

Nos EUA, algumas forças tentam mobilizar uma campanha em nível de rua promovendo uma intervenção estadunidense na Líbia. Deveríamos opor-nos a isto totalmente e recordar a qualquer pessoa bem intencionada os milhões de mortos promovidos pela intervenção dos EUA no Iraque.

As pessoas progressistas têm simpatia com os que lutam na Líbia e encaram como um movimento popular. Podemos ajudar tal movimento principalmente pelo apoio às suas exigências justas, mas rejeitando uma intervenção imperialista, seja qual for à forma que assuma. É o povo da Líbia que deve decidir o seu futuro.

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Ver também: Faut-il intervenir militairement en Libye ? , de Alain Gresh
O original encontra-se em www.workers.org/2011/editorials/libya_0303/
Fonte: www.resistir.info































Arábia Saudita é Fator Chave

Robert Fisk

La Jornada
México, 26/02/11





El terremoto de las pasadas cinco semanas en Medio Oriente ha sido la experiencia más tumultuosa, devastadora y pasmosa en la historia de la región desde la caída del imperio otomano. Por una vez, conmoción y pavor ” fue una descripción apropiada. Los dóciles, supinos, incorregibles y serviles árabes del orientalismo se han transformado en luchadores por la libertad y la dignidad, papel que los occidentales hemos asumido siempre que nos pertenece en exclusiva en el mundo. Uno tras otro, nuestros sátrapas están cayendo, y los pueblos a quienes les pagábamos por controlar escriben su propia historia: nuestro derecho a meternos en sus asuntos (el cual, por supuesto, seguiremos ejerciendo) ha sido disminuido para siempre.

Las placas tectónicas siguen desplazándose, con resultados trágicos, valientes e incluso humorísticos, en el sentido negro del término. Incontables potentados árabes habían proclamado siempre que querían democracia en Medio Oriente. El rey Bashar de Siria dice que mejorará la paga de los burócratas. El rey Bouteflika de Argelia ha levantado de pronto el estado de emergencia. El rey Hamad de Bahrein ha abierto las puertas de sus prisiones. El rey Bashir de Sudán no volverá a postularse a la presidencia. El rey Abdulá de Jordania estudia la idea de una monarquía constitucional. Y Al Qaeda, bueno, ha estado más bien callada. ¿Quién hubiera creído que el anciano de la cueva de pronto saldría al exterior y se deslumbraría por la luz de la libertad en vez de la oscuridad maniquea a la que sus ojos se habían acostumbrado? Ha habido montones de mártires en todo el mundo musulmán, pero las banderas islamitas no aparecen por ningún lado. Los jóvenes hombres y mujeres que ponen fin a los dictadores que los atormentan son musulmanes en su mayoría, pero el espíritu humano ha sido mayor que el deseo de morir. Son creyentes, sí, pero ellos llegaron allí primero y derrocaron a Mubarak mientras los esbirros de Bin Laden aún siguen llamando a deponerlo en videos ya rebasados.

Pero ahora una advertencia. No ha terminado. Experimentamos ahora ese sentimiento cálido, ligeramente húmedo que precede al restallar del trueno y el relámpago. La película de horror final de Kadafi aún debe terminar, si bien con esa terrible mezcla de farsa y sangre a la que nos hemos acostumbrado en Medio Oriente. Y el destino que le aguarda, sobra decirlo, pone en una perspectiva aún más clara la vil adulación de nuestros propios potentados. Berlusconi –que en muchos aspectos es ya una espantosa imitación de Kadafi–, Sarkozy y lord Blair de Isfaján se nos revelan todavía más ruines de lo que los creíamos. Con ojos basados en la fe bendijeron a Kadafi el asesino. En su momento escribí que Blair y Straw habían olvidado el factor “ sorpresa ” , la realidad de que este extraño foco estaba por completo chiflado y sin duda cometería otro acto terrible para avergonzar a nuestros amos. Y sí, ahora todo periodista británico va a tener que agregar “ la oficina de Blair no devolvió nuestra llamada ” al teclado de su laptop.

Todo el mundo insta ahora a Egipto a seguir el “ modelo turco ” , lo cual parece implicar un placentero coctel de democracia e islamismo cuidadosamente controlado. Pero si esto es cierto, el ejército egipcio mantendrá sobre su pueblo una vigilancia repudiada y nada democrática en las décadas por venir. Como ha expresado el abogado Alí Ezzatyar, “los líderes militares egipcios han hablado de amenazas al ‘modo de vida egipcio’… en una no muy sutil referencia a las amenazas de la Hermandad Musulmana. Parece una página tomada del manual turco”.

El ejército turco se ha revelado cuatro veces como creador de reyes en la historia moderna de su país. ¿Y quién si no el ejército egipcio, creador de Nasser, constructor de Sadat, se libró del ex general Mubarak cuando su tiempo llegó?

Y la democracia –la verdadera, desbocada, fallida pero brillante versión que los occidentales hemos hasta ahora cultivado con amor (y con razón) para nosotros mismos– no va a convivir felizmente en el mundo árabe con el pernicioso trato que Israel da a los palestinos y su despojo de tierras en Cisjordania. Israel, que ya no es “ la única democracia en Medio Oriente ” , sostuvo con desesperación –junto con Arabia Saudita, por amor de Dios– que era necesario mantener la tiranía de Mubarak. Oprimió el botón de pánico de la Hermandad Musulmana en Washington y elevó el acostumbrado cociente de miedo en los cabilderos israelíes para descarrilar una vez más a Obama y a Hillary Clinton. Enfrentados a los manifestantes democráticos en las tierras de la opresión, ellos siguieron la consigna de respaldar a los opresores hasta que fue demasiado tarde. Me encanta eso de la “ transición ordenada ” : la palabra “ ordenada ” lo dice todo.

Sólo el periodista israelí Gideon Levy lo entendió bien. “ ¡Deberíamos decir Mabrouk Misr! ” , escribió. ¡Felicidades, Egipto!

Sin embargo, en Bahrein viví una experiencia deprimente. El rey Hamad y el príncipe heredero Salman han estado plegándose a los deseos del 70 por ciento chiíta de su población –¿80?–, abriendo prisiones y prometiendo reformas constitucionales. Le pregunté a un funcionario del gobierno en Manama si tal cosa es de veras posible. ¿Por qué no tener un primer ministro electo en vez de la familia real Jalifa? “Imposible –respondió, chasqueando la lengua–. El CCG no lo permitiría.” En vez de CCG –Consejo de Cooperación del Golfo–, léase Arabia Saudita.

Y es aquí, me temo, donde nuestro relato se vuelve más oscuro.

Ponemos muy poca atención a esa banda autocrática de príncipes ladrones; creemos que son arcaicos, analfabetos en política moderna, ricos (sí, “ como Creso nunca soñó ” , etcétera), y reímos cuando el rey Abdulá ofreció compensar cualquier descenso en el dinero de rescate de Washington al régimen de Mubarak, como ahora volvemos a reír cuando promete 36 mil millones de dólares a sus ciudadanos para mantenerlos callados. Pero no es para reír. La revuelta que finalmente echó a los otomanos del mundo árabe comenzó en los desiertos de Arabia; sus tribus confiaron en Lawrence, McMahon y el resto de nuestra banda. Y de Arabia salió el wahabismo, esa poción espesa y embriagadora –un líquido negro coronado por espuma blanca– cuya espantosa simplicidad ha atraído a todo aspirante a islamita y atacante suicida en el mundo musulmán sunita. Los sauditas criaron a Osama Bin Laden, a Al Qaeda y al talibán. No mencionemos siquiera que ellos aportaron la mayoría de los atacantes del 11 de septiembre de 2001. Y ahora los sauditas creerán que ellos son los únicos musulmanes que continúan en armas contra el mundo resplandeciente. Tengo la ingrata sospecha de que el destino del desfile de la historia de Medio Oriente que se desenvuelve ante nuestros ojos se decidirá en el reino del petróleo, de los lugares sagrados y de la corrupción. Cuidado.

Añadamos una nota ligera. He estado recogiendo las citas más memorables de la revolución árabe. Tenemos “ Regrese, señor presidente, sólo bromeábamos ” , de un manifestante contra Mubarak. Y el discurso de estilo goebbeliano de Saif al Islam al Kadafi: “Olvídense del petróleo, olvídense del gas… habrá guerra civil”. Mi cita favorita, egoísta y personal, llegó cuando mi viejo amigo Tom Friedman, del New York Times, se reunió conmigo a desayunar con su acostumbrada sonrisa irresistible. “Fisky –me dijo–, ¡un egipcio se me acercó ayer en la plaza Tahrir y me preguntó si yo era Robert Fisk!”

Eso es lo que yo llamo una revolución.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Por que uma nova crise financeira é certa

A regulação se estabelece para assegurar que o sistema funcione adequadamente e para proteger as pessoas contra fraudes. Mas a atividade bancária é mais lucrativa quando não há regras, razão pela qual os líderes do setor e seus grupos de pressão seguem tentando impedir os esforços para introduzir reformas. E, em geral, tem conseguido. Os bancos seguem concedendo hipotecas a pessoas desempregadas com alta possibilidade de inadimplência, da mesma forma que faziam antes da crise. Obama sabe onde está o problema, mas também sabe que não será reeleito sem o apoio de Wall Street. É uma questão tempo até que haja outro crack. O artigo é de Mike Whitney.


Mike Whitney - www.cartamaior.com.br


13/02/11


No dia 9 de agosto de 2007, houve um episódio em um banco francês que desencadeou uma crise financeira que acabaria dissolvendo mais de 30 trilhões de dólares em capital, envolvendo o planeta na maior recessão desde os tempos da Grande Depressão. O evento em questão foi descrito em um discurso do diretor executivo da Pimco (administradora de fundos de investimento), Paul McCulley, na 19° edição da Annual Hyman Minsky Conference on the State of the U.S. and World Economies (Conferência Anual Hyman Minsky sobre o estado das economias dos EUA e do mundo).


Eis um trecho da exposição de McCulley:


“Se tivesse que escolher um dia para assinalar o Momento Minsky, seria o 9 de agosto de 2007. E, de fato, não ocorreu aqui nos EUA. Ocorreu na França, quando o Paribas Bank (BNP) disse que não podia valorar os pacotes de ativos hipotecários tóxicos em três de seus produtos de investimento fora de balanço, e que, em função disso, os investidores, que acreditavam poder sair a qualquer momento, estavam presos. Lembro desse dia tão bem quanto do aniversário do meu filho. E este último ocorre uma vez por ano. Porque o desastre em cadeia começou neste dia. Foi um pouco mais tarde, neste mesmo mês, que cunhei o termo “Sistema Bancário paralelo” durante o simpósio anual do Federal Reserve, em Jackson Hole. Era só o segundo ano que eu assistia ao simpósio. Estava um pouco sobressaltado e basicamente me dediquei a escutar a maior parte dos três dias. Ao final, me levantei e (parafraseando) disse: o que está ocorrendo é bem simples. Temos uma fuga no Sistema Bancário Paralelo e a única dúvida é o quão rápido ela vai se retroalimentar a medida que seus ativos e suas obrigações vão regressando aos balanços do sistema bancário convencional”.


O BNP estava realizando atividades de intermediação creditícia, ou seja, trocava ativos que se constituíam com garantias de pacotes hipotecários (MBS, em sua sigla em inglês) por empréstimos de curto prazo nos mercados de derivativos. Soa tudo muito complicado, mas não é algo distinto do que fazem os bancos quando tomam os depósitos de seus clientes e os investem em ativos de longo prazo. A única diferença neste caso é que estas atividades não estavam reguladas, de modo que não havia nenhum órgão governamental encarregado de determinar a qualidade dos empréstimos ou assegurar que as distintas entidades financeiras estavam suficientemente capitalizadas para cobrir eventuais perdas. Esta falta de regulação acabou por gerar consequências catastróficas para a economia mundial.


Passou quase todo um ano desde que o calote das hipotecas subprime começasse a se propagar em massa, até que o mercado secundário (onde se trocam estes ativos “tóxicos”) colapsou. O problema era simples: ninguém sabia se essas hipotecas eram ou não seguras, de modo que era impossível fixar um preço para os ativos. Isso criou o que o professor de Yale, Gary Gorton chama um problema de e. coli (nome genérico para as bactérias que produzem enfermidades como a salmonela), ou seja, ainda que só uma pequena quantidade de carne seja contaminada, milhões de libras em hamburguers têm que ser retirados do mercado. A mesma regra se aplica aos MBS. Ninguém sabia quais delas continham os maus empréstimos. Assim, o mercado inteiro foi paralisado e trilhões de dólares em garantias começaram a perder valor.


As subprime foram a faísca que acendeu o fogo, mas o mercado das subprime não era suficientemente grande para atingir todo o sistema financeiro. Isso exigir tremores no sistema bancário paralelo. Eis um trecho de um artigo de Nomi Prins que fala de quanto dinheiro está envolvido aqui:


“Entre o ano de 2002 e o início de 2008, aproximadamente 1,4 trilhões de dólares em hipotecas subprime correspondiam a emprestadores que tinham quebrado como New Century Financial. Se esses empréstimos fossem nosso único problema, no papel a solução poderia ter sido que o governo subsidiasse essas hipotecas até um custo máximo destes 1,4 trilhões de dólares. No entanto, e segundo Thomson Reuters, outros 14 trilhões de dólares em produtos financeiros complexos se criaram a partir dessas hipotecas, precisamente porque os fundos de investimento estimularam tanto sua produção quanto sua dispersão. Desde modo, quando se chegou ao máximo de desembolso público em julho de 2009, o governo tinha sido obrigado a gastar 17,5 trilhões de dólares para sustentar a pirâmide de Ponzi de Wall Street, ao invés dos iniciais 1,4 trilhões (Shadow Banking, Nomi Prins,The American Prospect)”.


O sistema bancário paralelo foi criado para que as grandes instituições financeiras que dispunham de muita liquidez tivessem algum lugar onde colocar seu dinheiro no curto prazo com a máxima rentabilidade. Por exemplo, digamos que a Intel tem “sobrando” 25 bilhões de dólares. Pode entregar o dinheiro a um intermediário financeiro como Morgan Stanley em troca de uma garantia (os MBS ou os ABS), e obter em troca um rendimento razoável por seu empréstimo. Mas se aparece algum tipo de problema e se questiona a qualidade da garantia, então os bancos (neste caso, o Morgan Stanley) se vê forçado a realizar cortes e mais cortes que podem acabar colapsando o sistema inteiro. Isso é o que aconteceu no verão de 2007. Os investidores descobriram que muitas das subprimes eram fraudulentas, de modo que bilhões de dólares foram retirados rapidamente dos mercados financeiros e o Federal Reserve teve que intervir para evitar que o sistema entrasse em colapso.


A regulação se estabelece para assegurar que o sistema funcione adequadamente e para proteger as pessoas contra fraudes. Mas a atividade bancária é mais lucrativa quando não há regras, razão pela qual os líderes do setor e seus grupos de pressão seguem tentando impedir os esforços para introduzir reformas. E, em geral, tem conseguido. A lei Dodd-Frank (de reforma do sistema financeiro) está repleta de lacunas e não resolve realmente os problemas cruciais da qualidade dos empréstimos, da disponibilidade de capital e da diminuição dos riscos. Os bancos seguem podendo conceder tranquilamente hipotecas a pessoas desempregadas com muitas possibilidades de não poder pagá-las, da mesma forma que faziam antes da crise. E seguem utilizando-as para produzir complexos instrumentos de dívida sem manter nem sequer 5% do valor original do empréstimo (esta questão segue em disputa, de fato). Além disso, as agências governamentais não poderão forçar as instituições financeiras a incrementar sua capitalização apesar de seguir existindo o perigo de que uma pequena turbulência no mercado possa quebrá-las, colocando em sério perigo o resto do sistema. Wall Street saiu ganhando de novo e agora a oportunidade para um novo impulso regulador já passou.


O presidente Barack Obama entende onde radica o problema, mas também sabe que não será reeleito sem o apoio de Wall Street. É por isso que há apenas duas semanas prometeu no Wall Street Journal que seguiria reduzindo a “gravosa” regulação que afeta a Wall Street. Sua coluna tratava de antecipar-se à publicação do informe final da Comissão de Investigação da Crise Financeira (FCIC, Financial Crisis Inquiry Commission), que possivelmente fará recomendações em defesa da regulação pública do setor. Obama torpedeou esse esforço ao ser colocar ao lado da grande finança. Agora é uma questão tempo até que haja outro crack.


Este é um trecho de um informe especial do Banco Federal de Nova York sobre o sistema bancário paralelo:


“Na véspera da crise financeira, o volume de crédito intermediado pelo sistema bancário paralelo era próximo aos 20 trilhões de dólares, ou seja, quase o dobro dos 11 trilhões que o sistema bancário tradicional intermediava. Hoje, essas mesmas cifras são de 16 trilhões e 13 trilhões, respectivamente. A debilidade dos administradores de fundos não surpreende quando só se dispõe de muito pouco capital para respaldar suas carteiras de ativos e, em troca, os investidores têm tolerância zero em relação às perdas (“Shadow Banking”, Federal Reserve Bank of New York Staff Report)”.


Assim que, quando o Lehman Brothers se desintegrou, entre 4 e 7 trilhões de dólares simplesmente viraram fumaça. Quantos milhões de empregos foram perdidos em função de uma má regulação? Quando se reduziu o PIB, a produtividade e a riqueza nacional? Quantas pessoas vivem agora dos cheques de alimentação estatais, ou dormem ao relento, ou tratam de evitar a falência de seus negócios porque algumas instituições financeiras desreguladas puderam dedicar-se à intermediação do mercado de crédito sem que o governo as supervisionasse?


Ironicamente, o Federal Reserve de Nova York nem sequer tenta negar a origem do problema: a desregulação. Eis o que dizem em seu informe: “Manejar a regulação foi a razão última da existência de muitos bancos no sistema paralelo”. O que isso quer dizer. Quer dizer que Wall Street sabe perfeitamente que é mais fácil ganhar dinheiro sem regras...as mesmas regras que protegem o público da depredação por parte de especuladores e gananciosos.


A única forma de arrumar o sistema é submeter à necessária regulação a qualquer instituição que atue como um banco. Sem exceções.
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(*) Mike Whitney é um analista político independente que vive no estado de Washington e colabora regularmente com a revista estadunidense CounterPunch.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: www.sinpermiso.info

Oriente Médio: O fantasma da revolução

40% dos 80 milhões de habitantes do Egito vivem abaixo da linha da pobreza; 44% da força de trabalho é analfabeta; 54% dos empregos são informais; o país tem um déficit fiscal de 8% do PIB --4 vezes superior ao do Brasil. (Financial Times)


(Carta Maior, 14/02/2011)

Reginaldo Nasser

No início da revolução iraniana em 1979, havia intenso apoio das potências capitalistas aos movimentos radicais islâmicos em todo o grande Oriente Médio e Ásia Central com o intuito de provocar aquilo que se convencionou chamar "arco de crise". O objetivo maior, claro, era atingir as regiões muçulmanas da União Soviética. De maneira análoga, pode-se dizer que, 32 anos depois, as revoltas populares na Tunísia, no Egito, Argélia e Iêmen podem ser os sinais iniciais de um novo “arco de crise”, mas agora de autênticas revoluções que poderão varrer o Grande Oriente Médio. O artigo é de Reginaldo Nasser.


Há um medo crescente alimentado, em grande parte, pelas elites conservadoras do Ocidente e do Oriente de que futuros acontecimentos no Egito poderão trilhar os mesmos caminhos da revolução que aconteceu no Irã em 1979 tais como: elegeu Israel como o grande inimigo, se envolveu em ações antiamericanas no mundo inteiro, privou as mulheres e as minorias dos seus direitos (como se tivessem direitos sob a ditadura de Mubarak). Numa região repleta de exemplo de ações armadas que atemorizam Israel, EUA e aliados ajudou a criar a imagem de que a melhor forma de combater ativistas islâmicos ( falsos ou verdadeiros) é uma ditadura secular.
No entanto é importante lembrar que, logo no início da revolução iraniana em 1979, havia intenso apoio das potências capitalistas aos movimentos radicais islâmicos em todo o grande Oriente Médio e Ásia Central com o intuito de provocar aquilo que se convencionou chamar "arco de crise". O objetivo maior, claro, era atingir as regiões muçulmanas da União Soviética, um regime materialista e ateu, de “vital importância para os EUA cujo centro de gravidade é o Irã” como afirmou à época Zbigniew Brzezinski (assessor segurança nacional do presidente Carter). O caos político resultante poderia facilitar a incorporação do american way of life nos inimigos de seus inimigos.

De maneira análoga, pode-se dizer que, 32 anos depois, as revoltas populares na Tunísia, no Egito, Argélia e Iêmen podem ser os sinais iniciais de um novo “arco de crise”, mas agora de autênticas revoluções que poderão varrer o Grande Oriente Médio. Diante de tais fatos, tal como todos outros governos norte-americanos anteriores, Obama, inicialmente preferiu ficar ao lado de seu “aliado leal” contra um movimento que levou a fundo a retórica dos direitos humanos presente em seu discurso no Cairo em 2009. Diga-se, é verdade, que esses momentos revelam a essência da decisão na política externa dos EUA que vai muito além da órbita do presidente da república. Apesar da celebração ritual da sociedade civil, autoridades dos EUA (militares, agências de inteligência e lobbies no congresso) sempre mantiveram fortes ligações com regimes repressivos e nunca mantiveram qualquer tipo de contato com os principais grupos oposicionistas.

Não há como negar que a religião é um fundamento essencial de identidade dos povos e um componente crucial da dinâmica de desenvolvimento das sociedades, em geral, e do mundo islâmico de forma particular. Contudo, tal como observou o professor Mark Levin, as fotos estampadas na grande mídia dos EUA podem ajudar-nos a entender melhor as diferenças entre os dois momentos revolucionários.

No início de 1979 as imagens dos jovens eram de exuberância revolucionária, aliadas a um sentimento raiva, supostamente alimentada por um fervor religioso, isso soou tão estranho para um cidadão norte-americano que parecia vir de um outro planeta. Já as fotos da praça Tahrir mostram mulheres e jovens, seculares e religiosos, curvando-se em orações diante dos blindados militares. Uma espécie jihad pacífica que sempre existiu, mas que não tinha os holofotes da mídia para mostrá-la.

Com criatividade e ousadia e mesmo diante das inúmeras provocações e assassinatos mantiveram-se determinados a não usar a violência. Suas táticas foram amplas mobilizações, aproximação com as forças armadas, paralisações de trabalhadores e uso das redes sociais que permitiu que o mundo inteiro fosse capaz de seguir suas batalhas em tempo real. Já a determinação em reprimir e, sobretudo, o desprezo pela forma pacífica e democrática de expressar opiniões, era evidente no início da Revolução Iraniana de 1979 onde vários grupos que defendiam a liberdade de imprensa e os direitos das minorias foram coagidos por verdadeiras gangues armadas.

No Egito, não há nenhuma figura carismática de estatura do aiatolá Khomeini. Ao contrário do clero xiita no Irã, a Irmandade Muçulmana não tem uma base em uma organização clerical. Apesar de contar com setores conservadores, não estão envolvidos em debates sobre o uso do véu ou de outros comportamentos religiosos, mas sim em questões envolvendo corrupção, desemprego, liberdade política e violações dos direitos humanos. Nesse sentido, diferentemente do Irã a possibilidade de mobilizar a maioria dos egípcios em torno de uma agenda de reformas é maior.

Observar o que vai acontecer no Egito nas próximas semanas é como assistir um teatro das sombras em que apenas alguns dos atores estão sob um foco de luz e outros vão saindo aos poucos. Entretanto, podemos antecipar e destacar que islâmico ou secular, o novo governo poderá – espero que sim - recusar a adotar incondicionalmente os métodos adotados pelos EUA e a Europa na guerra contra o terror sem que isso signifique ser partidário de Bin Laden. Por sua vez, não afrontar Israel não significa, por outro lado, necessariamente qualquer tipo de concordância com a política de ocupação dos territórios palestinos. E, finalmente, um novo governo poderá também questionar se para manter a tão aclamada estabilidade política na região é necessário gastar bilhões de dólares em equipamentos militares.

De toda forma restar ver como os militares e as elites dirigentes que agora comandam a transição vão descobrir uma maneira de conviver com este novo cenário. Nesses momentos cruciais sempre é bom lembrar alguém que entendia de revoluções ( Marx) que certa feita fez a seguinte advertência: “As criadas políticas da França estão varrendo a lava ardente da revolução com vassouras velhas, e discutem entre si enquanto executam sua tarefa”.
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(*) Professor de Relações Internacionais da PUC-SP


Fonte: www.cartamaior.com.br

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Egito Livre - Tariq Ali

Tombando o Ditador


Tariq Ali [*]


www.resistir.info   12/02/11


Uma noite alegre no Cairo. Que felicidade estar vivo, ser egípcio e árabe. Na Praça Tahrir (Liberdade) estão cantando "O Egito está livre" e "Vencemos!"


A remoção de Mubarak por si só (e levando o grosso dos seus US$ 40 bilhões saqueados do tesouro nacional), sem quaisquer outras reformas, seria considerada na região e no Egito como um enorme triunfo político. Isto colocará novas forças em movimento. Uma nação que testemunhou milagres de mobilizações de massa e uma enorme ascensão na consciência política popular não será fácil de esmagar, como o demonstra a Tunísia.


A história árabe, apesar das aparências, não é estática. Logo após a vitória israelense de 1967 que assinalou a derrota do nacionalismo secular árabe, um dos grandes poetas árabes, Nizar Qabbani, escreveu:


Crianças árabes,

Grãos de milho do futuro,

Vocês romperão nossas cadeias.

Matem o ópio nas nossas cabeças,

Matem as ilusões.

Crianças árabes,

Não leiam sobre a nossa geração sufocada,

Somos um caso sem esperança,

Tão sem valor quanto uma casca de melão.

Não leiam acerca de nós,

Não nos copiem,

Não nos aceitem,

Não aceitem nossas ideias,

Somos uma nação de vigaristas e trapaceiros.

Crianças árabes,

Chuva da Primavera,

Grãos de milho do futuro,

Vocês são a geração que ultrapassará a derrota.

Quão feliz ele teria sido se visse a sua profecia ser cumprida.


A nova onda de oposição em massa aconteceu num momento em que não há partidos nacionalistas radicais no mundo árabe, e isto ditou as tácticas: enormes assembleia em espaços simbólicos que colocam um desafio imediato à autoridade – como que a dizer, estamos a mostrar nossa força, não queremos testá-la porque não estamos organizados nem preparados para isso, mas se você nos picar recorde que o mundo está observando!


Esta dependência da opinião pública global está mudando, mas também é um sinal de fraqueza. Tivesse Obama e o Pentágono ordenado ao exército egípcio que limpasse a praça – ainda que a alto custo – os generais provavelmente teriam obedecido às ordens, mas teria sido uma operação extremamente arriscada para eles, e talvez para Obama. Isto poderia ter dividido o alto comando dos soldados, dos praças e oficiais subalternos, muitos do quais têm parentes e famílias na manifestação e muitos do quais sabem e sentem que as massas estão do lado certo. Isso teria significado um levantamento revolucionário de uma espécie que nem Washington nem a Irmandade Muçulmana – o partido do cálculo frio – desejavam.


A demonstração de força popular foi suficiente para despedir o atual ditador. Ele só ia se os EUA decidissem tirá-lo. Depois de muita hesitação, ele fez isso. Eles não tinham qualquer outra opção séria. A vitória, contudo, pertence ao povo egípcio cuja coragem e sacrifícios infindáveis tornaram tudo isto possível.



E assim isso não acabou mal para Mubarak e o seu homem de confiança. Tendo lançado bandidos da segurança só há quinze dias atrás, o fracasso do vice-presidente Suleiman para desalojar os manifestantes da praça foi mais um prego no caixão. A maré ascendente das massas egípcias, com trabalhadores entrando em greve, juízes se manifestando nas ruas e a ameaça de multidões ainda maiores na semana seguinte, tornou impossível para Washington suportarem Mubarak e seus cúmplices. O homem a que Hillary Clinton se referiu como sendo um amigo leal, na verdade "família", foi jogado no lixo. Os EUA decidiram cortar as suas perdas e autorizaram a intervenção militar.


Omar Suleiman, um velho favorito do Ocidente, foi selecionado por Washington como vice-presidente, endossado pela UE, para supervisionar uma "transição ordeira". Suleiman sempre foi encarado pelo povo como um torturador brutal e corrupto, um homem que não só dá ordens como também participa no processo. Um documento da WikiLeaks contem um telegrama de um antigo embaixador dos EUA a louvá-lo por não ser "melindroso". O novo vice-presidente advertiu as multidões de manifestantes dia 8 de fevereiro passado que se eles não se desmobilizassem voluntariamente o exército estava aguardando para fazer: um golpe podia ser a única opção restante. Foi ela, mas contra o ditador que eles haviam apoiado durante 30 anos. Era o único meio de estabilizar o país. Dali não podia haver retorno à "normalidade".


A era da razão política está retornando ao mundo árabe. Os povos estão fartos de serem colonizados e intimidados. Enquanto isso, a temperatura política está subindo na Jordânia, Argélia e Iêmen.


[*] Escritor. Seu último livro: "The Obama Syndrome: Surrender at Home, War Abroad", ed. Verso.


Fonte: O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/tariq02112011.html

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A Guerra à WikiLeaks

John Pilger


Os ataques à WikiLeaks e ao seu fundador, Julian Assange, constituem uma resposta à revolução na informação que ameaça as velhas ordem de poder, na política e no jornalismo. A incitação ao assassínio trombeteada por figuras públicas nos Estados Unidos, juntamente com tentativa da administração Obama de corromper o direito e remeter Assange para um buraco prisão infernal durante o resto da sua vida são as reacções de um sistema opressor revelado como nunca o fora antes.

Nas últimas semanas, o Departamento da Justiça dos EUA estabeleceu um grande júri secreto do outro lado do rio de Washington, no distrito Leste do estado de Virgínia. O objectivo é acusar Julian Assange sob uma desacreditada lei de espionagem utilizada para prender activistas da paz durante a Primeira Guerra Mundial, ou uma lei da "guerra ao terror" que degradou a justiça estado-unidense. Peritos judiciais descrevem o júri como uma "preparação deliberada", destacando que este canto da Virgínia é onde residem empregados e famílias do Pentágono, CIA, Departamento de Segurança Interna e outros pilares do poder americano.

"Isto não é boa notícia", contou-me Assange quando falámos na semana passada, sua voz era sombria e preocupada. Ele diz que pode ter "dias maus – mas recupero". Quando nos encontrámos em Londres no ano passado, eu disse, "Você está a fazer alguns inimigos muito sérios, nada menos que o governo mais poderoso empenhado em duas guerras. Como é que trata essa sensação de perigo?" A sua resposta foi caracteristicamente analítica. "Não é que não haja medo. Mas a coragem é realmente o domínio intelectual sobre o medo – por um entendimento do que são os riscos e de como navegar através deles".

Sem pensar nas ameaças à sua liberdade e segurança, ele diz que os EUA não são o principal "inimigo tecnológico" do WikiLeaks. "A China é o pior ofensor. A China tem tecnologia agressiva e refinada de intercepção que posiciona entre cada leitor dentro da China e toda informação de fonte exterior à China. Temos estado a combater numa batalha para assegurar que possamos obter informação dali e há agora toda espécie de meios pelos quais os leitores chineses podem acessar o nosso sítio".

Foi neste espírito de "obter informação" que o WikiLeaks foi fundado em 2006, com uma dimensão moral. "O objectivo é justiça", escreveu Assange na homepage, "o método é a transparência". Ao contrário de uma lenga-lenga corrente nos media, o material da WikiLeaks não é "rejeitado". Menos de um por cento dos 251 mil telegramas de embaixadas dos EUA foram divulgados. Como destaca Assange, a tarefa de interpretar e editar material que possa prejudicar indivíduos inocentes exige "padrões [condizentes] com altos níveis de informação e fontes primárias". Para o poder dissimulado, este jornalismo é o mais perigoso.

Em 18 de Março de 2008, foi prevista uma guerra à WikiLeaks num documento secreto do Pentágono preparado pelo "Cyber Counterintelligence Assessments Branch". A inteligência dos EUA, dizia, pretendia destruir o sentimento de "confiança" o qual é o "centro de gravidade" do WikiLeaks. Ela planeou fazê-lo com ameaças de "revelação [e] processo criminal". Silenciar e criminalizar esta fonte rara de jornalismo independente era o objectivo, enlamear o método. O inferno não contem uma fúria tão grande quanto a de um mafiosi imperial desdenhado.

Outros, também desdenhados, acabaram por desempenhar um papel de apoiantes, intencionalmente ou não, na caçada a Assange, alguns por razões de pequenos ciúmes. Sordidez e decadência descrevem o seu comportamento, o qual serve apenas para destacar a injustiça contra um homem que corajosamente tem revelado o que temos o direito de conhecer.

Quando o Departamento da Justiça dos EUA, na sua caça a Assange, intima o Twitter e contas de email, registos bancários e de cartões de crédito de pessoa por todo o mundo – como se todos nós fôssemos súbditos dos Estados Estados – grande parte dos media "livre" em ambos os lados do Atlântico dirigem a sua indignação contra o perseguido.

"Então, Julian, porque não volta à Suécia agora?" perguntava o título que encimava a coluna de Catherine Bennett, no Observer de 19 de Dezembro, a qual questionava a resposta de Assange a alegações de má conduta sexual com duas mulheres em Estocolmo em Agosto último. "Continuar a adiar o momento da verdade, para este campeão das revelações sem medo e da abertura total", escreveu Bennett, "pode começar a parecer quase desonesto, assim como inconsistente". Nem uma palavra na peçonha de Bennett considerava as ameaças que se aproximam contra os direitos humanos básicos de Assange e à sua segurança física, como foram descritas por Geoffrey Robertson QC na audiência de extradição em Londres a 11 de Janeiro.

Em resposta a Bennett, o editor on line da Nordic News Network, da Suécia, Al Burke, escreveu ao Observer explicando que "respostas plausíveis à questão tendenciosa de Catherine Bennett" eram criticamente importantes e [as respostas] estavam livremente disponíveis. Assange permaneceu na Suécia durante mais de cinco semanas depois de ter sido feita a acusação de violação – ignorada a seguir pela promotora chefe em Estocolmo – e de terem falhado repetidas tentativas dele e do seu advogado sueco para encontrar a segunda promotora que reabriu o caso após a intervenção de um político do governo. E ainda assim, como destacou Burke, esta promotora concedeu-lhe permissão para voar a Londres onde "também se ofereceu para ser entrevistado – uma prática normal em tais casos". Assim, parece pelo menos muito estranho que a promotora haja então emitido um Mandado de Prisão Europeu (European Arrest Warrant). O Observer não publicou a carta de Burke.

Este registo claro é crucial porque descreve o comportamento pérfido das autoridades suecas – uma sequência bizarra que me foi confirmada por outros jornalistas em Estocolmo e pelo advogado sueco de Assange, Bjorn Hurtig. Não é só isso. Burke destacou o perigo que Assange enfrenta caso seja extraditado para a Suécia. "Documentos divulgados pelo Wikileaks desde que Assange foi para a Inglaterra", escreveu ele, "indicam claramente que a Suécia submeteu-se sistematicamente à pressão dos Estados Unidos em matérias relativas a direitos civis. Há amplos motivos para a preocupação de que se se verificar Assange ser posto sob a custódia das autoridades suecas possa ser entregue aos Estados Unidos sem a devida consideração dos seus direitos legais.

Estes documentos foram virtualmente ignorados na Grã-Bretanha. Eles mostram que a classe política sueca afastou-se muito da visível neutralidade de uma geração atrás e que o aparelho militar e de inteligência do país está quase absorvido dentro da matriz de Washington em torno da NATO. Num telegrama de 2007, a embaixada dos EUA em Estocolmo louva o governo sueco dominado pelo conservador Partido Moderado do primeiro-ministro Fredrik Reinfeldt como vindo "de uma nova geração política e não preso às tradições [anti-EUA] [e] na prática um parceiro pragmático e forte com a NATO, tendo tropas sob comando NATO no Kosovo e no Afeganistão.

O telegrama revela como a política externa é amplamente controlada por Carl Bildt, o actual ministro dos Estrangeiros, cuja carreira foi baseada na lealdade aos Estados Unidos. Ela remonta à guerra do Vietname, quando ele atacava a televisão pública sueca por difundir a evidência de que os EUA estavam a bombardear alvos civis. Bildt desempenhou um papel importante no Comité para a Libertação do Iraque, um grupo de lobby com laços estreitos com a Casa Branca de George W. Bush, a CIA e a extrema-direita do Partido Republicano.

"A significância de tudo isto para o caso Assange", observa Burke num estudo recente, "é que será Carl Bildt e talvez outros membros do governo Reinfeldt quem decidirá – abertamente ou, mais provavelmente, de modo furtivo por trás de uma fachada de legalidade formal – sobre aprovar ou não o esperado pedido dos EUA para a extradição. Tudo no seu passado indica claramente que um tal pedido será atendido".

Exemplo: em Dezembro de 2001, com a "guerra ao terror" em andamento, o governo sueco abruptamente revogou o estatuto de refugiado político de dois egípcios, Ahmed Agiza e Mohammed al-Zari. Eles foram entregues a um esquadrão de sequestros da CIA no aeroporto de Estocolmo e "rendered" para o Egipto, onde foram torturados. Quando o ombudsman sueco para a Justiça investigou e descobriu que os seus direitos humanos haviam sido "gravemente violados", já era demasiado tarde.

As implicações para o caso Assange são claras. Ambos os homens foram removidos sem o devido processo legal e antes que os seus advogados pudessem apelar ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos e em resposta a uma ameaça dos EUA de impor um embargo comercial à Suécia. No ano passado, Assange requereu residência na Suécia, esperando basear ali a Wikileaks. Acredita-se geralmente que Washington tenha advertido a Suécia através de contactos mútuos de inteligência das consequências potenciais. Em Dezembro, a promotora Marianne Ny, a qual reactivou o caso Assange, discutiu no seu sítio web a possibilidade da extradição de Assange para os EUA.

Quase seis meses após as alegações sexuais terem sido tornadas públicas, Julian Assange foi acusado sem crime, mas o seu direito à presunção de inocência foi negado deliberadamente. O desdobrar dos acontecimentos na Suécia tem sido no mínimo grotesco. O advogado australiano James Catlin, que actuou a favor de Assange em Outubro, descreve o sistema de justiça sueca como "uma gargalhada... Não há precedente para isto. Os suecos estão a inventar à medida que avançam". Além de notar contradições no caso, ele afirma que Assange não criticou publicamente as mulheres que fizeram as alegações contra ele. Foi a polícia que deu informação ao equivalente sueco do Sun, o Expressen, com material difamatório, iniciando um julgamento pelos media por todo o mundo.

Na Grã-Bretanha, este julgamento foi saudado ainda mais por acusadores ávidos, com a BBC à dianteira. Não houve presunção de inocência no tribunal Newsnight de Kirsty Wark, em Dezembro. "Porque não pediu desculpas às mulheres?", perguntou ela a Assange, seguido por: "Você nos dá a sua palavra de honra de que não se evadirá?" No programa Today da Radio 4, John Humphrys, o parceiro de Catherine Bennett, disse a Assange que ele era obrigado a voltar à Suécia "porque a lei diz que deve". O vociferante Humphrys, contudo, tem interesses mais prementes. "Será você um predador sexual?", perguntou. Assange respondeu que a sugestão era ridícula, pelo que Humphrys perguntou com quantas mulheres ele havia dormido.

"Será que mesmo a Fox New desceu a esse nível", espantou-se o historiador americano William Blum. "Oxalá Assange tivesse sido educado nas ruas de Brookly, como eu fui. Ele então teria sabido como responder precisamente a tal pergunta: "Você quer dizer incluindo a sua mãe?"

O que é mais impressionante acerca destas "entrevistas" não é tanto a sua arrogância e falta de humildade intelectual e moral; é a sua indiferença para com questões fundamentais de justiça e liberdade e a sua imposição de termos de referência estreitos e lascivos. Fixar estas fronteiras permite ao entrevistador diminuir a credibilidade jornalística de Assange e do WikiLeaks, cujos feitos notáveis se erguem em contraste vivo com os seus próprios. É como observar os velhos e rançosos guardiões do status quo a lutarem para impedir a emergência do novo.

Neste julgamento dos media há obviamente uma dimensão trágica para Assange, mas também para o melhor do jornalismo de referência. Ao publicar uma grande quantidade de edições profissionalmente brilhantes com as revelações do WikiLeaks, festejadas por todo o mundo, a 17 de Dezembro o Guardian recuperou a sua cidadania no establishment ao virar-se contra a sua fonte em apuros. Um artigo de Nick Davies, correspondente sénior do jornal, afirmava que lhe havia sido dado o ficheiro "completo" da polícia sueca com "novos" e "reveladores" excertos lascivos.

O advogado sueco de Assange, Bjorn Hurtig, diz que faltam provas cruciais no ficheiro dado a Davies, incluindo "o facto de que as mulheres foram reentrevistadas e lhes foi dada oportunidade de alteraram a suas estórias", assim como o tweets e mensagens SMS entre elas, as quais são "críticas para trazer justiça a este caso". Também é omitida evidência escusatória vital, tal como a declaração da promotora original, Eva Finne, de que "Julian Assange não é suspeito de violação".

Depois de examinar o artigo de Davies, James Catlin, o antigo advogado de Assange, escreveu-me: "A ausência completa do processo devido é a estória e Davies ignora-a. Por que o processo devido importa? Porque os poderes maciços dos dois braços do governo estão a ser mobilizados para serem usados contra o indivíduo cuja liberdade e reputação está em causa". Eu acrescentaria: e também a sua vida.

O Guardian aproveitou-se enormemente das revelações do WikiLeaks, sob muitos aspectos. Por outro lado, o WikiLeaks, que sobrevive principalmente com pequenas doações e já não pode mais receber fundos através de numerosos bancos e companhias de crédito devido à intimidação de Washington, nada recebeu do jornal. Em Fevereiro, a Random House publicará um livro do Guardian que certamente será um best-seller lucrativo, que a Amazon está a anunciar como O fim do segredo: a ascensão e queda do WikiLeaks (The End of Secrecy: the Rise and Fall of WikiLeaks). Quando perguntei a David Leigh, o executivo do Guardian responsável pelo livro, o que significava "queda", ele respondeu que a Amazon estava errada e que o título fora A ascensão (e queda?) do WikiLeaks. "Note o parênteses e a interrogação", escreveu ele. "Não destinado a publicação, de qualquer forma". (O livro agora é intitulado no sítio web do Guardian como WikiLeaks: Inside Julian Assange's War on Secrecy). Ainda assim, considerando tudo isso, a sensação é de que jornalistas "reais" estão outra vez a dominar. Falta de sorte para o rapaz, que nunca realmente fez parte [desse jornalismo].

Em 11 de Janeiro, a primeira audiência para a extradição de Assange foi efectuada no Belmarsh Magistrates Court, um endereço infame porque aqui, antes do advento das ordens de controle, eram despachadas pessoas para a própria Guantanamo britânica, a prisão de Belmarsh. A mudança do habitual tribunal de magistrados de Westminster foi devida a uma falta de instalações para a imprensa, segundo as autoridades. Sem dúvida não foi coincidência que eles tenham anunciado isto no dia em que o vice-presidente dos EUA Joe Biden declarou Assange um "terrorista high tech".

Da sua parte, Julian Assange está preocupado acerca do que acontecerá a Bradley Manning, o alegado informante, que preso em condições tão horrorosas que a US National Commission on Prisons classifica como "tortuosas". O soldado Manning é o mais eminente prisioneiro de consciência do mundo, tendo permanecido fiel ao Princípio de Nuremberg de que todo soldado tem o direito a "uma opção moral". O seu sofrimento ridiculariza a noção da "terra da liberdade".

"Informantes [acerca] do governo", dizia Barack Obama em 2008, na campanha para a presidência, "são parte de uma democracia saudável e devem ser protegidos de represálias". Obama tem desde então perseguido e processado mais informantes do que qualquer outro presidente na história americana.

"Quebrar Bradley Manning é o primeiro passo", disse-me Assange. "O objectivo é claramente rompe-lo e forçá-lo à confissão de que de alguma forma conspirou comigo para prejudicar a segurança nacional dos Estados Unidos. De facto, nunca ouvi o seu nome antes de ter sido publicado na imprensa. A tecnologia WikiLeaks foi concebida desde o princípio para assegurar que nunca saibamos as identidades ou nomes das pessoas que submetem material. Somos tão indetectáveis como incensuráveis. Este é o único meio de assegurar que as fontes são protegidas".

Ele acrescenta: "Penso que o que está a emergir nos media de referência é a consciência de que se posso ser acusado outros jornalistas também o podem. Mesmo o New York Times está preocupado. Isto não costumava ser assim. Se um informante fosse processado, editores e repórteres eram protegidos pela Primeira Emenda que os jornalistas consideravam como garantida. Isso está a ser perdido. A divulgação dos registos da guerra do Iraque e do Afeganistão, com as suas provas da matança de civis, não provocou isto – é a revelação e o embaraço da classe política: a verdade do que governos dizem em segredo, de como mentem em público; de como são principiadas guerras. Eles não querem que o público saiba destas coisas e têm de encontrar bodes expiatórios".

O que há acerca da "queda" do WikiLeaks? "Não há queda", disse ele. "Nunca publicámos tanto como agora. A WikiLeaks agora é reproduzida (mirrored) em mais de 2000 sítios web. Não posso manter o registo de todos os sítios que o imitam: aqueles que estão a fazer os seus próprios WikiLeaks... Se algo acontecer a mim ou ao WikiLeaks, ficheiros de "segurança" serão divulgados. Eles falam mais da mesma verdade ao poder, incluindo os media. Há 504 telegramas de embaixadas numa organização de difusão e há telegramas sobre Murdoch e Newscorp".

A propaganda mais recente acerca do "dano" provocado pelo WikiLeaks é uma advertência do Departamento de Estado dos EUA de "possíveis ameaças à segurança de centenas de activistas de direitos humanos, responsáveis de governos estrangeiros e homens de negócio identificados em telegramas diplomáticos". Foi assim que o New York Times submissamente o anunciou a 8 de Janeiro, mas é falso. Numa carta ao Congresso, o secretário da Defesa Robert Gates admitiu que nenhumas fontes sensíveis de inteligência haviam sido comprometidas. Em 28 de Novembro, McClatchy Newspapers informou que "responsáveis dos EUA reconheceram que não tinham evidência até à data de que a divulgação [anterior] de documentos levasse à morte de alguém". A NATO em Cabul disse à CNN que não podia descobrir uma única pessoa que precisasse de proteger.

O grande dramaturgo americano Arthur Miller escreveu: "A ideia de que o estado... está a punir tantas pessoas inocentes é intolerável. E por isso a evidência tem de ser negada internamente". O que o WikiLeaks nos tem dado é a verdade, incluindo raras e preciosas visões de como e porque tantas pessoas inocentes sofreram em domínios de terror disfarçados como guerras e executadas em nosso nome; e de como os Estados Unidos secretamente e desenfreadamente intervieram em governos democráticos desde a América Latina ao seu mais leal aliado, a Grã-Bretanha.

Javier Moreno, o editor de El Pais, que publicou os registos WikiLeaks na Espanha, escreveu: "Acredito que o interesse global activado pelos documentos WikiLeaks é devido principalmente ao simples facto de que revelam conclusivamente a extensão em que políticos do ocidente têm estado a mentir aos seus cidadãos".

Esmagar figuras individuais como Julian Assange e Bradley Manning não é difícil para uma grande potência, ainda que de forma covarde. O que está em causa é que não deveríamos permitir que isto aconteça, o que significa que aqueles de nós que pretendem esclarecer a situação não deveriam colaborar por qualquer meio. Transparência e informação, para parafrasear Thomas Jefferson, são a "moeda" da liberdade democrática. "Toda organização noticiosa", disse-me um importante constitucionalista americano, "deveria reconhecer que Julian Assange é um deles e que processá-lo terá um enorme e gélido efeito sobre o jornalismo".

O meu documento secreto favorito – divulgado pelo WikiLeaks, naturalmente – é do Ministério da Defesa em Londres. Ele descreve jornalistas que servem o público sem temor ou favor como "subversivos" e "ameaças". Isto é uma medalha de honra.

13/Janeiro/2011

O original encontra-se em www.johnpilger.com/...

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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Um povo desafia o seu ditador

Robert Fisk, no Cairo





Manifestantes egípcios enfren-tam canhões de água e gás lacrimogêneo durante as ba-talhas generalizadas travadas no Cairo.

Pode ser o fim. É certamente o começo do fim. Por todo o Egito, dezenas de milhares de árabes enfrentaram ontem gás lacrimogêneo, ganhos de água, granadas atordoantes e fogo real para exigir a remoção de Hosni Mubarak após mais de 30 anos de ditadura.



E quando o Cairo jaz ensopada sob nuvens de gás lacrimogêneo de milhares de latas disparadas sobre multidões densas pela polícia de choque, parece que o seu domínio se aproxima do fim. Ontem nenhum de nós nas ruas do Cairo sabia onde estava Mubarak – que mais tarde apareceria na televisão para demitir o seu gabinete. E descobri que ninguém se importava.

Eles foram corajosos, em grande medida pacíficos, estas dezenas de milhares, mas o comportamento chocante dos polícias à paisana de Mubarak – os battagi, a palavra significa literalmente "bandidos" em árabe – que batiam, golpeavam e assaltavam manifestantes enquanto os polícias observavam e nada faziam, foi uma desgraça. Estes homens, muitos deles ex-polícias viciados em droga, na noite passada foram a linha de frente do estado egípcio. Os verdadeiros representantes de Hosni Mubarak quando polícias uniformizados despejavam gás sobre as multidões.

Houve um ponto na noite passada em que latas de gás continuavam a lançar fumo sobre as águas do Nilo quando a polícia de choque e manifestantes combatia sobre as pontes do grande rio. Era incrível, um povo levantado que não mais aceitava violência e brutalidade e prisão como seu destino na maior nação árabe. E os próprios polícias podem estar a quebrar: "O que podemos fazer?", perguntou-nos um da polícia de choque. "Temos ordens. Pensa que queremos fazer isto? O país está a ir abaixo". O governo impõe um cessar-fogo na noite passada quando manifestantes ajoelharam-se a orar em frente da polícia.

Como descrever um dia que pode demonstrar-se ser uma página tão gigantesca na história do Egito? Talvez os repórter devam abandonar as suas análises e apenas contar o relato do aconteceu desde a manhã até à noite numa das mais antigas cidades do mundo. Assim, aqui está, a estória da minhas notas, rabiscadas em meio a um povo desafiante em face de milhares de polícias à paisana e polícias uniformizados.

Começou na mesquita Istikama na Praça Giza: uma feia passagem de escalavrados blocos de apartamentos em betão e uma linha de polícia de choque que se estendia até o Nilo. Todos nós sabíamos que Mohamed El Baradei estaria ali para as orações do meio-dia e, a princípio, a multidão parecia pequena. Os polícias fumavam cigarros. Se isto era o fim do reinado de Mubarak, era um arranque pouco impressionante.

Mas então, não muito depois de as últimas orações terem sido expressas naquela multidão de crentes, levantaram-se da rua, viraram-se para a polícia. "Mubarak, Mubarak", gritavam eles. "A Arábia Saudita está à sua espera". Foi quando os canhões de água foram disparados sobre a multidão – a polícia tinha toda a intenção de combatê-los apesar de nem mesmo uma pedra ter sido lançada. A água irrompia dentro da multidão e então as mangueiras foram apontadas diretamente a El Baradei, o qual cambaleou para trás, encharcado.

Ele havia retornado de Viena poucas horas antes e poucos egípcios pensam que dirigirá o Egito – ele diz que quer ser um negociador – mas isto foi uma desgraça. O mais honrado político egípcio, um vencedor do Prêmio Nobel que manteve cargo de principal inspetor nuclear da ONU, foi encharcado como um garoto da rua. Eis o que Mubarak pensa dele, suponho: apenas um outro perturbador com uma "agenda oculta" – que é realmente a linguagem que o governo egípcio está a usar neste momento.

E então o gás lacrimogêneo arrebentou sobre as multidões. Talvez houvesse uns poucos milhares agora, mas quando passeei junto a eles, algo notável aconteceu. Dos blocos de apartamento e de becos escuros, das ruas da vizinhança, centenas e a seguir milhares de egípcios enxamearam para a estrada conduzindo à Praça Tahrir. Isto é uma táctica que a polícia decidiu impedir. Ter detratores de Mubarak no próprio centro do Cairo sugeriria que o seu domínio já estava acabado. O governo havia cortado a Internet – cortando o Egito do resto do mundo – e extinguido todos os sinais de celular. Não fez diferença.

"Queremos a queda do regime", bradavam as multidões. Talvez não o mais memorável brado de revolução mas eles o gritavam muitas vezes até serem abafados pelo estouro das granadas de gás lacrimogêneo. De todo o Cairo vinham em ondas para a cidade, jovens classe média de Gazira, os pobres dos bairros de lata de Beaulak al-Daqrour, marchando firmemente através das pontes do Nilo como um exército – o que, admito, era o que eram.

Mas o gás das granadas chovia sobre eles. Tossindo e com ânsias de vômito, eles marchavam em frente. Muitos mantinham os casacos sobre as bocas ou faziam fila numa loja de limões onde o proprietário espremia o fruto fresco nas suas bocas. O sumo de limão – um antídoto para o gás lacrimogêneo – entornava sobre o pavimento até a sarjeta.

Isto foi no Cairo, naturalmente, mas estes protestos estavam a ter lugar por todo o Egito, no mínimo em Suez, onde 13 egípcios foram mortos. As manifestações começavam não só em mesquitas como também em igrejas coptas. "Sou cristão, mas sou egípcio em primeiro lugar", disse-me um homem chamado Mina. "Quero que Mubarak se vá". E aqui chegaram os primeiro bataggi, empurrando à frente das fileiras da polícia a fim de atacar os manifestantes. Eles tinham bastões de metal e cassetetes de polícia – vindos de onde? – e varas aguçadas. Poderiam ser processados por crimes graves se o regime Mubarak cair. Eles eram maldosos. Um homem chicoteou um jovem sobre as costas com um longo cabo amarelo. Ele uivou com o sofrimento. Por toda a cidade, os polícias postavam-se em fileiras, legiões delas, com o sol a cintilar sobre os seus visores. A multidão deveria estar temerosa, mas a polícia olhava ameaçadoramente, como pássaros encapuzados. Então os manifestantes atingiram a margem Leste do Nilo.

Uns tantos turistas foram envolvidos neste espetáculo – vi três senhoras de meia-idade sobre uma das pontes do Nilo (os hotéis do Cairo, naturalmente, não haviam dito aos seus hóspedes o que estava a acontecer) – mas a polícia decidiu que controlaria a extremidade Leste do tabuleiro da ponte. Eles abriram as suas fileiras outra vez e enviaram os bandidos para bater na vanguarda dos manifestantes. E foi neste momento que o envenenamento por gás lacrimogêneo começou a sério, centenas e centenas de latas choviam sobre as multidões que marchavam de todas as estradas para dentro da cidade. Ele picava os nossos olhos e fazia-nos tossir e respirar com dificuldade. Homens estavam a ser nauseados junto a lojas com as frentes fechadas.

Incêndios parecem ter estalado na noite passada próximo da sede do NDP, o partido que carimbava as ordens de Mubarak. Um cessar-fogo foi imposto e os primeiros relatos falam de tropas na cidade, o sinal fatal de que a polícia perdeu o controle. Abrigamo-nos no antigo Café Riche perto da Praça Telaat Harb, um pequeno restaurante e bar com funcionários vestidos de azul; e ali, a bebericar o seu café, estava o grande escritor egípcio Ibrahim Abudul Meguid, mesmo à nossa frente. Era como encontrar-nos com Tolstoi a almoçar em meio à Revolução Russa. "Não houve reação de Mubarak!" exaltou-se ele. "É como se nada houvesse acontecido! Mas eles conseguirão – o povo conseguirá!" Os clientes sentados sufocados com o gás. Foi uma daquelas cenas memoráveis que ocorrem em filmes e não na vida real.

E havia um homem idoso sobre o pavimento, com uma mão sobre os olhos a arder. O coronel reformado Weaam Sali do Exército egípcio, usando as suas fitas de medalhas da guerra de 1967 com Israel – a qual o Egito perdeu – e da guerra de 1973, a qual o coronel pensa que o Egito venceu. "Estou deixando as fileiras dos soldados veteranos", disse-me ele. "Estou aderindo aos manifestantes". E o que dizer do Exército? Ao longo do dia não o vimos. Os seus coronéis, brigadeiros e generais estiveram silenciosos. Estariam à espera até que Mubarak impusesse a lei marcial?

As multidões recusaram-se a cumprir o toque de recolher. No Suez, elas atearam fogo aos camihões da polícia. Em frente ao meu hotel, tentaram empurrar um outro caminhão para dentro do Nilo. Eu não podia voltar ao Cairo Ocidental através das pontes. O gás das granadas ainda se deslocava para o Nilo. Mas a polícia finalmente teve pena de nós – alguns deles, tenho de dizer, que ontem não esteve muito em evidência – e levou-nos para a margem própria do Nilo. E havia um velho barco a motor, da espécie turística, com flores de plástico e um proprietário receptivo. Assim, navegamos de volta com estilo, bebericando Pepsi. E então um veloz barco amarelo surgiu subitamente com dois homens que fazerem sinais de vitória para as multidões nas pontes, com uma garota de pé atrás, segurava uma enorme bandeira nas mãos. Era a bandeira do Egito.

29/Janeiro/2011

O original encontra-se em www.independent.co.uk/
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