O SUS e a desigualdade no Brasil
Alexandre
Padilha*
06/01/2015
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O Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que busca oferecer acesso universal à saúde: mas como resolver o subfinanciamento do SUS?
Às vésperas do Natal, depois de dias de internação,
felizmente a modelo e apresentadora Andressa Urach recebeu alta hospitalar, com
vida e pronta para se reabilitar. Durante todos esses dias, a imprensa e as
redes foram ricas em comentar sobre a vida da modelo, sobre boatos em relação a
sua saúde, sobre técnicas estéticas, sobre a ditadura da beleza e clínicas e
mais clínicas. Raras matérias traziam uma informação que surpreende a todos:
depois de um périplo por clínicas particulares sem solução definitiva, foi em
um hospital 100% SUS, do Grupo Hospitalar Conceição (um dos poucos próprios do
Ministério da Saúde) que a modelo teve a sua vida salva e a saúde reabilitada.
Foram médicos e profissionais de saúde que enfrentam todas as carências que
estão presentes nos hospitais públicos, que cuidaram da complicação decorrente
do procedimento estético. Mais uma vez, neste ato, garantiram a modelo o
direito de todos os 200 milhões de brasileiros: o acesso a um sistema de saúde
que busca ser universal.
Nem no meu maior devaneio SUSista esperava uma
manchete do tipo: "Hospital do SUS salva modelo com complicações em
procedimentos estéticos realizados em clínica privada". Ou " Ao
contrário de Miami, modelo não precisou pagar antecipadamente por vida salva em
Hospital do SUS". Mas é preciso falarmos alto para que esta, uma das
contradições da relação entre dois sistemas de saúde, público e privado, não
passe desapercebida. Pelo tamanho atual dos dois sistemas no Brasil, é
fundamental que as contradições sejam cada vez mais enfrentadas, sob risco de
inviabilizarmos o projeto de um sistema público universal com qualidade e
reforçarmos a iniquidade também no sistema privado.
O Brasil é o único país do mundo, com mais de 100
milhões de habitantes, que busca oferecer a sua população o acesso universal a
saúde. Nem mesmo as novas Constituições da América Latina, apelidadas de
bolivarianas, foram tão ousadas:" Saúde é DIREITO de todos e DEVER do
Estado". Ao mesmo tempo, temos cerca de 50 milhões de usuários de planos
de saúde médico-hospitalares (eram 30 milhões em 2003) e 70 milhões, incluindo
planos odontológicos. Os números de ambos os sistemas impressionam ministros da
Saúde e investidores de todo o mundo. O caso similar a modelo, pacientes do
sistema privado recorrerem ao SUS, por falta de cobertura ou por situação de
emergência é muito mais comum do que se imagina. Desde 2011, quando assumi o Ministério
da Saúde, implantamos um conjunto de mudanças de gestão para identificar quando
isso ocorre. Com elas, busca-se garantir o ressarcimento do plano de saúde ao
SUS, porque é dele que se deve cobrar, não do paciente. Desde então, as
operadoras são obrigadas a emitir um número de cartão SUS para todo usuário de
plano, permitindo ao Ministério este rastreamento. Você que me lê e é usuário
de plano de saúde tem número de cartão SUS e
talvez não saiba. De lá para cá, foram recordes sucessivos de recuperação
de recursos para o SUS: em 3 anos, mais do que em toda história da Agência
Nacional de Saúde (ANS), criada em 2000. Mas muito precisa-se avançar nessa
cobrança, e o governo Dilma prosseguiu em novas medidas em relação a isso. O
motivo mais comum de internação no SUS por detentores de planos de saúde,
acreditem: parto. Recentemente, correu as redes a notícia de turista canadense,
que teve parto de urgência no Havaí e, quando voltou para casa, recebeu conta
de US$2,5 milhões para pagar.
Poderia citar outros exemplos em que somos usuários
do SUS sem nem reconhecermos. Desde 2001, o Brasil é recordista mundial de
transplantes em hospitais públicos. O SAMU salva vidas sem perguntar o plano ou
exigir cheque. A vigilância sanitária estabelece regras e fiscaliza a comida
dos restaurantes, inclusive os chiques, de preços estratosféricos. As mesmas
analisam risco a saúde de equipamentos, medicamentos, bebidas vendidas em
massa, cosméticos e produtos de estética. O próprio uso do HIDROGEL já estava
condenado pela Anvisa, evitando novos casos como o de Andressa Urach.
Estas contradições da convivência de dois sistemas
públicos e privado impactam nos maiores desafios atuais de sobrevivência do
projeto SUS: o seu subfinanciamento e a iniquidade no acesso aos serviços. E
criam um ambiente, no mercado de trabalho e no complexo industrial da saúde,
que influencia fortemente outro fator decisivo para uma saúde pública
humanizada: a formação e a postura dos profissionais de saúde.
Há um consenso suprapartidário no Brasil: a saúde
pública é subfinanciada. A divergência é como resolver este fato. Desde o final
da CPMF, que retirou R$40 bilhões anuais do orçamento do Ministério da Saúde, o
Brasil investe na saúde pública em média 3 vezes per capta menos do que
parceiros sul americanos como Chile, Argentina e Uruguai; cerca de 7 a 8 vezes
do que sistemas nacionais europeus recentes como Portugal e Espanha, cerca de
11 vezes menos do que o tradicional Sistema Nacional Inglês. Ao mesmo tempo, segundo
dados recentes publicados pelo IPEA, a isenção fiscal referente aos planos de
saúde no Brasil chegou a cerca de R$ 18 bilhões. Ou seja, o mesmo Estado que
não garante recursos suficientes para prover um sistema público para todos,
co-financia a alternativa para uma parcela da população, que se vê obrigada a
pagar valores expressivos para ter acesso a saúde. Além disso, o mesmo Estado
suporta o atendimento de vários procedimentos que de alguma forma não são
cobertos pelos planos. A incorporação tecnológica, o envelhecimento da
população e o impacto dos acidentes automobilísticos e da violência urbana nos
custos dos serviços de emergência e reabilitação, transformam esta equação, já
precária, em insustentável. Não a toa, a melhoria da saúde é a primeira demanda
da população e ter um plano de saúde, o sonho da nova classe trabalhadora. No
último período, dois avanços importantes do governo Dilma foram conquistados: a
regra que estabelece quanto União, estados e municípios são obrigados a
investir em saúde e a vinculação de um percentual dos recursos do pré-sal. Mas
precisamos avançar sempre.
As opções para o financiamento da saúde são uma das
expressões da desigualdade não tão revelada no nosso país. É mais do que hora
de todos nós, que colocamos a redução das desigualdades como centro de um
projeto político, enfrentá-las. Se não o fizermos, perderemos a capacidade de
interlocução com segmentos expressivos da classe trabalhadora, que sofre com a
baixa qualidade e os custos dos sistemas públicos e privados. Temos que ir para
ofensiva no diálogo com a sociedade e explicitar que ampliar o financiamento a
saúde passa, necessariamente, por inverter o sistema tributário injusto com o
qual convivemos. Não é razoável, em um país como o Brasil, que alguém, ao receber
R$ 60 mil em 12 meses de trabalho, paga 27% de Imposto de Renda, enquanto
alguém que receber R$ 2 milhões de herança, praticamente não será taxado. Em
países como EUA (30-40%) França (45%), Alemanha, Japão (50%) as alíquotas para
heranças seriam outras. Estudos de 1999 mostram que imposto sobre fortunas no
Brasil, entre 0,8% a 1,2%, em fortunas acima de R$ 1 milhão, renderiam uma
arrecadação de cerca de 1,7% do PIB, mais do que era obtido pela CPMF.
A formação e a conduta profissional é o outro
território invadido por estas relações dos dois sistemas público e privado. A
batalha do Mais Médicos, as denúncias recentes de abuso sexual e preconceito
por alunos de medicina nas faculdades e a atitude absurda de algumas lideranças
condenarem a campanha antiracismo organizada pelo Ministério da Saúde só
explicitaram o arcabouço de valores que influencia a formação dos nossos
futuros profissionais, de ambos os sistemas. No cerne, há duas correias de
tensão, que se alimentam mutuamente. Por um lado, um ideário liberal de
exercício da profissão, que alimenta, desde os primeiros dias de graduação, uma
não aposta em um sistema público de qualidade e o desrespeito em relação aos
seus usuários: pobres, mulheres, negros, homossexuais e "gente não
diferenciada". Por outro, um mercado dinâmico e lucrativo de tecnologia,
órteses, próteses, equipamentos, fármacos, serviços, publicações, congressos
que financia uma visão cada vez ultraespecializante da formação e da atuação em
saúde. Não a toa, a investigação iniciada pelo Ministério da Saúde, em Março de
2013 que teve luz recente graças a matéria de TV, e o Mais Médicos incendiaram
o debate, questionaram paradigmas e condutas. Não há nenhum profissional de
saúde no Brasil, nem aquele que se especializou em realizar procedimentos
estéticos em clínicas privadas, que não tenha dependido do SUS para se formar.
Nos meus tempos de estudante de medicina cunhamos a frase: "chega de
aprender nos pobres para só querer cuidar dos ricos"
Esta realidade desafiadora nos abre uma grande
oportunidade. O entendimento de que um sistema público dessa dimensão, em um
país tão desigual e diverso como o nosso, gera plataforma continental para um
amplo complexo de indústria e serviços no campo da saúde. O Brasil será mais
rico e menos desigual se pudermos articular as duas perspectivas. Não será
possível sustentar um sistema público de saúde sem crescimento econômico e para
tal é necessário colocarmos os 2 pés no universo da inovação tecnológica. Ao
mesmo tempo, o complexo de indústrias e de serviços da saúde não sobrevive no
Brasil se desprezar o mercado interno impulsionado pelo acesso a um sistema
público, cada vez mais tecnológico. Usar o poder de compra do estado para
fortalecer um setor econômico que gere empregos e inovação tecnológica no Brasil
teve, na Saúde, a sua experiência recente mais exitosa. Ela foi calcada de um
lado na ousadia, ao estabelecer o interesse público e nacional como o rumo a
ser seguido, e previsibilidade, regras que estimulassem o setor privado a fazer
este jogo de interesse para o Brasil. Beber dessa experiência é fundamental
para fortalecermos a Saúde como um impulso, e não um peso a carregar, na agenda
de desenvolvimento do Brasil.
*Alexandre
Padilha, médico, 43 anos, ex-Ministro da Coordenação Política de Lula e Saúde de
Dilma e candidato a governador de SP em 2014