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sexta-feira, 24 de junho de 2011

10 Anos Sem as Reflexões de Milton Santos

Reflexões de Um Mundo Pós Neoliberalismo



Estamos convencidos de que a mudança histórica em perspectiva provirá de um movimento de baixo para cima, tendo como atores principais os países subdesenvolvidos e não os países ricos; os deserdados e os pobres e não os opulentos e outras classes obesas; o indivíduo liberado, partícipe das novas massas, e não o homem acorrentado; o pensamento livre e não o discurso único. Os pobres não se entregam e descobrem a cada dia formas inéditas de trabalho e de luta; a semente do entendimento já está plantada e o passo seguinte é o seu florescimento em atitudes de inconformidade e, talvez, rebeldia”1.

Milton Santos


A primeira vez que escrevi sobre o professor Milton Santos foi na seção (Espaço & Memória) da Revista Paranaense de Geografia nº 7, em agosto de 2001 para homenagear Milton pela sua passagem. Volto agora para refletir sobre os 10 anos sem Milton Santos. Não é bem uma homenagem póstuma, pois acredito que a maior homenagem que um intelectual pode prestar, e debater suas ideias, refletir sobre sua produção. Pois como costuma denunciar Milton, a maior parte da nossa Elite intelectual dominante gosta de falar, e tem ojeriza do pensar! Mais é também uma homenagem também, principalmente num país pouco acostumado a glorificar seus expoentes, como ele mesmo não se cansava de denunciar.

Escrever sobre Milton Santos exige muito rigor, reflexão, memória, respeito e também celebração, assim, lembro-me do tempo de estudante quando o vi pela primeira vez, em 1988, na sala de recepção do Hotel Lancaster, em Curitiba, por ocasião de sua conferência, sobre o papel do Geógrafo no Terceiro Mundo. Conferência proferida no Salão nobre da Caixa Econômica Federal, no centro de Curitiba. Esse Seminário foi um sucesso, pela primeira vez que participei da organização de um Evento Cientifico, nunca tinha visto tantas pessoas interessadas em debater, pois tínhamos saído de um período de repressão e silêncio.

Em conversas reservadas ele deixou transparecer suas magoas e  angústias da sua vida no exterior, a sua saída do Brasil, seu exílio por conta do golpe militar de 1964.

Na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 64, o ex-capitão do Exército Victor Hugo, reformado por "insanidade mental", mas encarregado de "missões especiais" no golpe, na Bahia, de arma em punho e aos berros, invadiu o 10º andar do edifício Napoli, bem em frente ao farol da Barra, em Salvador, para prender os moradores de seus quatro apartamentos: Entre eles o professor da Universidade Federal da Bahia e editorialista de "A Tarde", Milton Santos. (...) Em 64, Milton Santos já era mito e símbolo, na Bahia tão disfarçadamente racista.

(...) Em 1958, já voltava da Universidade de Estrasburgo, na França, com o doutorado em Geografia. Em 60, Jânio Quadros o conheceu na viagem a Cuba e, eleito, nomeou sub-chefe da Casa Civil na Bahia. Continuou fazendo pesquisas e livros ("Localização Industrial", "A Cidade como Centro de Região" e outros). (...)

A "Folha" diz que, "preso 60 dias em Salvador, só foi libertado porque sofreu um princípio de infarto". Errado também. Passou mal lá na prisão, mas não foi infarto, foi pancada! . Foi solto porque professores e intelectuais franceses, seus colegas em Estrasburgo, acionaram o historiador francês Fernando Braudel, um dos fundadores e pioneiros da USP (Universidade de São Paulo). (2) 

Em março de 2001 foi meu último encontro com o Milton na USP (eu havia levado uma transcrição de uma conferência sua em Curitiba para revisão), nossa conversa foi no seu gabinete de trabalho. Mesmo debilitado e abatido pela sua doença, trabalhou correndo contra o tempo, pois como ele mesmo disse, em minha vida já fiz muitas concessões, e não vou fazer mais concessões à minha doença, ele tinha pressa de vida.

Quando lançou seu último trabalho em vida; O Brasil: território e sociedade no início do século XXI, ele nos cobrava uma nova centralidade, na interpretação da formação territorial do Brasil. Aproveito essa oportunidade para conclamar todos àqueles que sempre estiveram do seu lado, seus alunos, seus colegas, seus admiradores, enfim todos que acreditam no seu pensamento e contribuição para continuar debatendo suas ideias. Precisamos manter sua posição no front, continuar seu trabalho de resistência e de intelectual autônomo, que em sua vida acadêmica ou em sua militância política, sempre foi fiel aos ideais de construção de uma sociedade mais justa e democrática.



"A educação corrente e formal, simplificadora das realidades do mundo, subordinada à lógica dos negócios, subserviente às noções de sucesso, ensina um humanismo sem coragem, mais destinado a ser um corpo de doutrina independente do mundo real que nos cerca, condenado a ser um humanismo silente, ultrapassado, incapaz de atingir uma visão sintética das coisas que existem, quando o humanismo verdadeiro tem de ser constantemente renovado, para não ser conformista e poder dar resposta às aspirações efetivas da sociedade, necessárias ao trabalho permanente de recomposição do homem livre, para que ele se ponha à altura do seu tempo histórico." 3.



Devido sua atualidade, e sua visão profética do futuro da Globalização Perversa (neoliberalismo), e a oportunidade de mostrar as novas gerações seu legado intelectual, faço a seguir uma síntese da sua contribuição para interpretação e análise do espaço geográfico, ou como ele formatou e definiu o Território Usado.

Milton Santos (1982, p.10) lembra que a formação econômica e social apesar de sua importância para o estudo das sociedades e para o método marxista, não mereceu, durante um longo período, estudos e discussões que levassem a renovar e aperfeiçoar o conceito, só  recentemente retomou-se o debate.

Para Sereni (1974 apud Santos, 1982, p.11) esta categoria expressa à unidade e a totalidade das diversas esferas – econômica, social, política, cultural – da vida de uma sociedade, daí a unidade de continuidade e descontinuidade de seu desenvolvimento histórico.

A noção de formação econômica e social foi elaborada por Marx e Engels (SANTOS, 1982 p.19) e a partir deste conceito Milton Santos pensando na importância da formação da sociedade e o papel do espaço, lançou seu modelo de Formação Sócio Espacial.

A importância de estudos desta natureza se deve a interpretação totalizadora, pois considera no estudo da realidade a relação entre elementos naturais e humanos em múltiplas escalas possibilitando compreender uma determinada realidade dentro de um universo mais amplo.

Foi o único brasileiro e receber um prêmio equivalente ao "Nobel", Vautrin Lud, em 1994.  Ao receber o prêmio o professor Milton Almeida dos Santos foi descoberto pelo grande público brasileiro. Prêmio comparável a um Nobel para a Geografia, o prêmio abriu-lhe as portas dos principais meios de comunicação. Sob a mira dos holofotes, passou a ter que administrar sua exposição à mídia - um problema para quem, crítico feroz dos processos que desumanizam o homem no fim de século  XX, prefere "manter-se outsider" e vê na solidão "uma necessidade do intelectual".  A vaidade  ̶  dizia Milton Santos  ̶  é o fio da navalha do intelectual: se por um lado é seu alimento, por outro pode levá-lo ao acomodamento.

No ano em que faleceu publicou "Por Uma Outra Globalização" e “Brasil: Território e Sociedade no Século XXI", obra que considerava síntese de suas ideias. Estruturava um novo livro O mundo pós-globalização - o período popular da história, que infelizmente não pode concluir. A "EDUSP", esta reeditando toda sua obra.

Milton Santos faleceu aos 75 anos no dia 24 de junho de 2001 após uma semana de internação em decorrência de um câncer de próstata diagnosticado em 1994. Desde então, o professor intensificara seu trabalho.

O Brasil perdeu um grande homem concorde-se ou não com suas ideias!



 (1 e 3) Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, Record, Rio de Janeiro, 2000.

(2) Sebastião Nery.

  

Breve Biografia


Milton Santos nasceu em Brotas de Macaúbas-BA em 03 de maio de 1926. Os pais, professores primários, o alfabetizaram em casa. Aos 8 anos, já havia concluído o equivalente ao curso primário. Neto de escravos por parte de pai foi incentivado a estudar sempre e muito.

Os benefícios de sua aplicação nos estudos o país nunca poderá negar, mas o geógrafo confessava uma frustração: embora Alcobaça seja um pedaço de terra entre o Oceano Atlântico e um rio, Milton, sempre às voltas com livros, nunca aprendeu a nadar. Da mesma forma, nunca participou das peladas e jamais entrou num estádio de futebol.

Já em Salvador, custeava suas aulas no colégio lecionando Geografia na própria escola aos alunos do que seria atualmente o ensino médio. Depois, incentivado por um tio advogado, cursou Direito. Diplomado, não chegou a exercer a profissão; prestou concurso público para professor secundário e foi lecionar Geografia em Ilhéus. Iniciou, então, carreira repleta de desafios, não raro impostos pela sua condição de negro.

Rodou o mundo, estudando e lecionando, numa trajetória impressionante. Aprendeu e ensinou na Europa, Américas e África. Fez trabalhar em seu favor o doloroso exílio que a ditadura militar lhe impôs por treze anos.

Foi um geógrafo sério e combativo. Não poupou ninguém de suas severas críticas.

Nós Ficamos órfãos do Milton em 24 de junho de 2001, a saudade toma o lugar de sua presença generosa, do seu sorriso aberto, de sua fala firme e suave, ficando a certeza de termos convivido com quem soube, mais do que ninguém, defender a construção de um mundo mais humano.

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