Os 99 batem na porta do 1
O grande jornal liberal da metrópole, The New York Times, ignorou o
protesto por quase uma semana. Foto: Lucas Jackson/Reuters/Latinstock
Antonio Luiz M. C. Costa
6 de outubro de 2011
“Primeiro o ignoram, depois o
ridicularizam, então o combatem e por fim você vence.” Ainda falta muito para a
etapa final, mas a frase de Gandhi descreve bem a reação ao movimento “Ocupemos
Wall Street”, ou #Occupywallstreet, tag de divulgação no Twitter do movimento
que diz representar 99% dos estadunidenses – todos que não pertencem à
oligarquia dos milionários. É uma ousadia de alguns milhares de cidadãos? Sim,
do mesmo tipo que levou outros tantos a se declararem representantes do
Terceiro Estado e, portanto, da esmagadora maioria dos franceses. De atrevimentos
se faz a história.
A ocupação foi inicialmente
proposta pela revista e movimento anticonsumista Adbusters, em 13 de julho.
Recebeu apoio de alguns outros grupos de ativistas e fez uma primeira reunião
de planejamento em 3 de setembro. Mas, quando o protesto de fato começou, em 17
de setembro, com uma marcha de 2 mil manifestantes, o New York Times não se
dignou a mencioná-lo nas suas páginas ou site. Impedidos de ocupar a Wall
Street propriamente dita, desde então fechada por grades móveis a todos os que
não trabalham nela, os manifestantes acamparam no Zucotti -Park, a -duas
quadras, cercados por -policiais. Mesmo assim, o grande jornal liberal da
metrópole, que cobriu manifestações comparáveis ou menores na África, Ásia ou
Europa, ignorou por quase uma semana o protesto a 15 minutos de suas redações,
salvo ocasionais menções de -blogueiros no seu portal.
Em 23 de setembro, veio sua
primeira reportagem, breve e condescendente, sobre o protesto que, segundo o
jornal, estava “desaparecendo”, quando permaneciam cerca de cem pessoas no
acampamento. A autora, Ginia Bellafante, destacou a dança topless de uma mulher
a tentar atrair a atenção dos passantes com a bandeira da Adbusters e frases
fora de contexto de alguns manifestantes – tais como “gostaria de me livrar do
motor a combustão” ou “quero criar espetáculos-”. Criticou severamente o
suposto “vácuo intelectual” e o “desejo de fazer a mímica do progressismo em
vez de praticá-lo conscientemente” e citou, mais articula-damente, um
zombeteiro corretor da Bolsa: “Olhe esses garotos com seus computadores Apple.
Apple, um dos maiores monopólios do mundo, com ações a 400 dólares. Será que
sabem disso?”*
Protestos têm cozinha comunitária, biblioteca com gibis do Batman, hippies e visitas de Slavoj Zizek, Michael Moore e Susan Sarandon.
Parece uma enorme
contradição. Mas o McDonald’s e o Burger King localizados nas imediações da
praça Zuccotti, no Distrito Financeiro de Nova York, ficam apinhados o dia
todo. No entanto, os quase mil manifestantes que ocupam a área localizada a
poucos blocos de Wall Street e se identificam como críticos ferrenhos das
grandes corporações não estão se alimentando no QG inimigo.
Mas a concentração
humana na praça, quatro semanas depois da dúzia de pioneiros anunciar que só
sairia da propriedade da Brookfield (uma das maiores empresas do setor
imobiliário dos EUA) quando o setor financeiro pagasse a conta pelo débâcle
financeiro da maior economia do planeta, gerou a única prova clara da
desorganização do “Ocupem Wall Street”: a falta de banheiros para atender às
quase dez mil pessoas – nas estimativas dos organizadores – que circulam pelo
local, localizado ao lado do terreno em que ficavam as torres gêmeas do World
Trade Center.
“Mas este é o
único porém. Confesso que estava preocupada em dormir no meio de Manhattan, na
rua, mas a experiência está sendo sensacional. O silêncio é absoluto depois das
dez da noite e assim que acordamos fazemos meditação e ioga. Este é, de longe,
o exercício democrático mais saudável de que participei”, disse Elizabeth Albrecht,
29 anos, que acaba de se formar em Psicologia na Universidade da Virgínia e
chegou à praça na sexta-feira com um grupo de militantes disposto a aprender
com a experiência do “Ocupem Wall Street” a fim de bisá-lo já esta semana em
Richmond, a capital do estado sulista.
Seu companheiro
Darrick Gregory, 23 anos, recém-graduado em Geografia pela mesma universidade,
conta que o grupo já conta com 300 participantes e já se chegou a um consenso
sobre o local a ser ocupado na cidade. “Anunciaremos no dia da ocupação. E
vamos unir nossas vozes a causas locais, como o combate ao projeto de lei que
pretende dificuldade a possibilidade de aborto em clínicas públicas em todo o
estado. Aprendemos aqui que nossa força vem do fato de não termos um objetivo
específico, sonhamos alto, queremos mudar o funcionamento da democracia
americana. O que nos alimenta é o nosso descontentamento e uma exigência, a de
que nossa voz seja de fato ouvida”, diz, calmo, feliz da vida com o calor de
verão em pleno outubro, como se os céus conspirassem para ajudar os moradores
de rua mais barulhentos da cidade.
A organização do “Ocupem Wall Street” segue jogando por terra os argumentos dos setores de esquerda incomodados com a ausência de lideranças e de uma plataforma mais definida para o movimento. Se não há lista de demandas, basta olhar em volta para perceber que a praça é uma cidade em miniatura, onde o ideário hippie se encontra com as mídias sociais características da geração Steve Jobs. No centro da praça há uma cozinha comunitária, um sucesso de administração e bom gosto. A água é reciclada. Há uma livraria comunitária, com títulos que vão do gibi do Batman, a biografia recém-lançada do teórico da comunicação canadense Marshall McLuhan (1911-1980), clássicos das ciências sociais e políticas e livros de ficção da moda.
Na extremidade
setentrional da Zuccotti, um telão mostra o site oficial do movimento e o
número de pessoas, também via Facebook e Twitter, que se declaram simpatizante
do “Ocupem Wall Street”. Até o momento em que esta reportagem era fechada, 440
mil pessoas dos quatro cantos do planeta afirmavam concordar com a “real
democracia, a luta pela justiça social e um fim à corrupção”.
Na manhã do
domingo em que a reportagem da Carta
Capital passeou pela rebatizada “praça da liberdade” o filósofo
esloveno Slavoj Zizek dava uma palestra para a multidão que o ouvia em um
quase-silêncio quebrado por gritos excitados e murmúrios de aprovação. Zizek
participou da assembléia-geral do “Ocupem Wall Street”, que acontece
diariamente, sem o uso de microfones. A voz do professor-visitante da
Universidade Colúmbia foi repetida em coro pelos moradores da praça, com alguma
dose de emoção. Camiseta vermelha, barba longa, o acadêmico agradou: “Eles nos
dizem que somos sonhadores. Não somos sonhadores! Estamos acordando de um sonho
que está se transformando em um pesadelo. Nós não estamos destruindo nada.
Somos apenas testemunhas da destruição autofágica do sistema. Todos conhecem a
imagem clássica dos quadrinhos, do carrinho à beira do precipício. Nós somos as
pessoas dizendo a Wall Street: êi, olhem para baixo!”, discursou, recebendo uma
saraivada de palmas e gritos entusiasmados da plateia.
Celebridades
outras já passaram pela praça desde que a repressão policial – com quase 700
manifestantes presos em uma marcha na Ponte do Brooklyn no fim de semana
passado – colocou o “Ocupem Wall Street” na pauta do dia dos EUA. Susan
Sarandon e Michael Moore circularam, com sucesso, pela área. E a líder da
minoria governista na Casa dos Representantes – equivalente à Câmara dos
Deputados no Brasil -, Nancy Pelosi, saiu em defesa do grupo no domingo, em
entrevista a Christiane Amanpour, em seu programa semanal de entrevistas na
rede ABC, afirmando ser justa a sensação de insatisfação dos manifestantes, que
“tem uma mensagem bem clara: é preciso mudar o que está aí”.
'um telão mostra o site oficial do movimento e o número de pessoas, também via Facebook e Twitter, que se declaram simpatizante do “Ocupem Wall Street”'
O “Ocupem Wall
Street”, que já se espalhou por dezenas de cidades do país – além dos jovens de
Richmond, passaram o fim de semana na praça manifestantes de Washington,
Portland, no Oregon, Los Angeles, Austin e Boston, dispostos a aprender com os
nova-iorquinos como incrementar as mobilizações populares – poderia funcionar
como pressão popular para a aprovação do plano recém-anunciado pelo governo
Obama de investir 447 bilhões de dólares a fim de criar empregos no país (a
taxa de desemprego segue na casa dos 9%), financiado por um aumento de taxas
entre os mais ricos da nação.
A mensagem central
do “Ocupem Wall Street”, presente em todas as marchas do grupo, é de representatividade
óbvia – “somos os 99% que pagam impostos” – e de oposição ao abono de pagamento
de impostos aos que ganham mais de 250 mil dólares, política fiscal criada no
governo Bush II com o objetivo de esquentar a economia do país.
'A organização do “Ocupem Wall Street” segue jogando por terra os
argumentos dos setores de esquerda incomodados com a ausência de lideranças'
“Hoje é meu
primeiro dia aqui, e estou muito bem impressionado. Vou voltar todos os dias. A
matemática é simples: precisamos parar de financiar o almoço de 200 dólares do
pessoal de Wall Street. Eles precisam pagar mais, a desigualdade social não
pode crescer ainda mais no governo Obama!”, disse Brian Crosby, 30 anos,
cozinheiro de um restaurante da cidade e crítico da semântica neoliberal, que,
em sua visão, humaniza as corporações e valoriza os consumidores em detrimento
dos cidadãos.
“Quem tem
dinheiro, pode, quem não tem, vem pra praça. O problema é que cada vez mais
aumenta o número dos lesados pela democracia americana. Nós só vamos crescer,
você vai ver!”, promete Joe Fionda, 27 anos, relaxado na “praça do povo”,
literalmente, segundo o bem-humorado nova-iorquino, “de frente para o crime”.
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