Continuamos com pequena
cartografia sobre o que está a pensar a filosofia atual por volta do Covid-19.
Nesta coluna recolhem-se algumas das reflexões das pensadoras mais populares
entre a esquerda do mundo anglo-saxão.
Transcrito de;
em Galego, da Espanha.
22 MAR 2020
Nesta coluna agrupamos as temperás reflexons das
pensadoras mais populares entre a esquerda anticapitalista —em sentido mais
amplo— do mundo anglo-saxom.
Para a escritora canadiana Naomi Klein o capitalismo
do desastre é aquele em que as grandes indústrias privadas se beneficiam das
crises de segurança a grande escala através de privatizaçons. A estratégia
política deste capitalismo do desastre é a doutrina do shock, um manejo destas
crises que lhe permite, enquanto a populaçom está concentrada em sobreviver às
emergências diárias e nom tem outra opçom que confiar em quem está no poder,
profundizar nas políticas que geram mais e mais desigualdade
Agora, diz Klein,
“o shock é realmente o próprio vírus. E foi manejado de umha maneira
que maximiza a confussom e minimiza a proteçom. Nom creio que isso seja umha
conspiraçom, é só a forma em que o governo dos EUA e Trump manejou
—completamente mal— esta crise. Trump até agora tratou isto nom como umha crise
de saúde pública senom como umha crise de perceçom, e um problema potencial
para a sua reeleiçom”. Quanto às possíveis saída de esquerda, Klein acha que
“quando somos provados pola crise, ou retrocedemos e nos desmoronamos, ou
crescemos, e encontramos reservas de força e compaixom que nom sabiamos que
éramos capazes de ter. Esta será umha dessas provas.”
Klein está a trabalhar muita ativamente no apoio a
Bernie Sanders e no impulso dum Green New Deal.
Naomi Klein: “O choque é realmente o próprio
vírus. E foi manipulaqdo de uma maneira que maximiza a confusão e minimiza a proteção”.
Numa linha semelhante escreveu Judith Butler, também envolta na luta pela
candidatura de Sanders. Ainda que seja uma pensadora bem próxima ao paradigma
da biopolítica da anterior entrega, neste artigo expressa-se numhas chaves
mais práticas e centradas na campanha dos Estados Unidos. Butler acha certo
potencial no confinamento, posto que “coincide com um novo reconhecimento da
nossa interdependência global durante o novo tempo e espaço que impom a
pandemia”. Se bem aponta à capacidade dos poderes para se reproduzirem e fortalecerem
dentro das zonas pandémicas, também acha linhas de fuga. Sinala, por exemplo, a
resposta do político germano Karl Lauterbach à pretensom de Trump de comprar os
direitos sobre a possível vacina para o Covid-19, ao espetar-lhe que “o
capitalismo tem limites”. Na defesa dum mundo onde todas as vidas importem, e
em plena campanha pola candidatura de Bernie Sanders, Butler destaca como “a
proposta de saúde universal e pública revitalizou um imaginário socialista nos
Estados Unidos, um que agora deve esperar para fazer-se realidade como política
social e compromisso público neste país.”
O provocador filósofo esloveno Slavoj Zizek, com a
sua combinaçom habitual entre cultura pop e ostalgie comunista, publicou já um
par de artigos em Russia Today analisando o impacto do coronavírus. No primeiro artigo, de 3 de fevereiro, apontava ao componente
racista com o que se estava a falar do novo vírus, mas a sua reflexom central é
a que pom o foco numha “perspetiva emancipatória inesperadamente oculta neste
pesadelo”, que por outra parte está a oferecer a imagem real dum mundo
nom-consumista. Com o seu habitual —e provocador— gosto polo potencial político
das estéticas pós-apocalípticas, Zizek vê na “beleza melancólica” das avenidas
vazias de Xangái ou Hong Kong umha oportunidade para retificar o mundo durante
a quarentena. É nesta reflexom que profundiza num segundo artigo, após advertir de como o Covid-19
poderia funcionar como um catalisador dos outros vírus ideológicos latentes na
sociedade, tais que o racismo, as teorias conspiranoicas ou as notícias falsas.
Rejeita as teorias da conspiraçom por volta do coronavírus, mas isso nom lhe
impede ser crítico com o manejo político da pandemia: “a bem fundamentada
necessidade médica de estabelecer quarentenas fijo-se eco das pressons
ideológicas para estabelecer limites claros e manter em quarentena os inimigos
que representam umha ameaça para a nossa identidade”.
Para além desses riscos iniciais, o coronavírus
também poderia ser o sinal que precisávamos para umha mudança política radical
que nos salve do desastre capitalista (e mesmo lembra o potencial utópico que
Fredric Jameson advertia nos filmes de catástrofes —asteroides sobre a Terra,
vírus letais...—, pois davam a oportunidade a solidariedades globais). É por
isso que o esloveno fala do coronavírus como “golpe ao Kill Bill”, pois a
epidemia é “um sintoma de que nom podemos continuar no caminho que temos
seguido até agora, precisa-se essa mudança”. Refere-se explicitamente às
catástrofes derivadas do caos climático, e aponta que em todos estes casos “a
resposta nom é o pánico, senom que o duro e urgente trabalho de estabelecer
umha sorte de coordenaçom global eficiente”, pondo como exemplo o trabalho da
OMS. É nesse sentido que acha que “talvez outro —e mais beneficioso— vírus
ideológico se expandirá e talvez nos infete: o vírus de pensar numha sociedade
alternativa, umha sociedade mais lá do estado-naçom, umha sociedade que se
atualize como solidariedade global e cooperaçom”; sem deixar de apontar (como
Boaventura de Sousa) “a ironia suprema do feito de que o que nos uniu a todos e
nos empurrou a umha solidariedade global, se exprima de tal maneira que há que
evitar o contato entre pessoas e mesmo isolar-se”.
Zizek vê na “beleza
melancólica” das avenidas vazias de Xangái ou Hong Kong uma oportunidade para
retificar o mundo durante a quarentena.
Desbota que o coronavírus seja à China o que a crise
de Chernobyl à queda da URSS, mas crê que poderia nascer “um novo comunismo
como sorte de organizaçom global com capacidade de controlo e regulaçom da
economia, mesmo limitando a soberania do estado-naçom quando for precisso, no
marco da ‘guerra médica’”. Isto é: o coronavírus como a oportunidade para umha
nova governança, forçosamente global, solidária e com umha economia em
incipiente planificaçom, um novo comunismo que nom concreta demasiado e que
mesmo acha de forma embrionária em praxes como a da OMS.
Por sua parte, outro dos grandes pensadores de
referência internacional, Noam Chomsky, limitou-se num primeiro momento a um
tuit onde se perguntava “What is the Coronavirus”, ligando para um vídeo da
jornalista do The Guardian Sarah Boseley, a modo de advertência sobre a
desinformaçom. Posteriormente deu umha entrevista em Il Manifesto à sua tradutoria
italiana, Valentina Nicoli, reconhecendo que “nom sei se há algo que valha a
pena publicar”, mas em vista de que estám a circular pola rede falsos artigos
do lingüista estadunidense, recobram todo o interesse as suas únicas opinions deitadas
até o de agora sobre o tema. De entrada Chomsky afirma que “a situaçom é mui
grave. E nom há credibilidade na afirmaçom de que o vírus se propagou
deliberadamente”. No seu diagnóstico os países assiáticos foram capazes de
conter a epidemia, indo os da UE com retrasso e os EUA numha situaçom terrível.
Acussa Trump e Kushner de minimizarem a gravidade da crise, atitude que se viu
“amplificada polos meios de comunicaçom da direita, polo que muitas pessoas
deixárom de tomar as precauçons mais básicas”. A pandemia, incide, apanha uns
hospitais debilitados após o “assalto neoliberal”, polo que estamos perante o
“enéssimo exemplo do fracasso do mercado, ao igual que o é a ameaça dumha
catástrofe meioambiental. O governo e as multinacionais farmacéuticas sabem de
há anos que existe umha grande probabilidade de que se produza umha grave
pandemia, mas como nom é bom para os benefícios preparar-se para isso, nom se
fijo nada.”
Noam Chomsky acusa o Trump e
Kushner de minimizarem a gravidade da crise, atitude que se viu “amplificada pelos
meios de comunicação da direita, fez com que muitas pessoas deixassem de tomar
as precauções mais básicas”.
Nesta mesma linha anti-neoliberal o referente mais
jovem da esquerda trabalhista, Owen Jones, apontava à enorme importância da questom de
classe e de género na incidência que vai ter o coronavírus no Reino Unido,
necessariamente diferente nos ricos que voam em jets privados a umhas férias de
luxo, na classe média profissional que teletrabalha e na primeira linha
proletária que permanece a pé de supermercado. Num artigo anterior, de maior calado no longo prazo,
esforçava-se por fazer pedagogia deste colapso e lograr vinculá-lo a um
problema muitíssimo maior mas muito menos visível, como é o do caos climático.
Dumha maneira semelhante, Mike Davis analisa o impato que vai ter a epidemia —um
“Katrina médico”— nuns EUA com umha “marcada divisom de classes no cuidado da
saúde” e com um sistema público de saúde enormemente erodido polos interesses
capitalistas. Ainda, pom de relevo a dimensom que pode encontrar esta epidemia
ao entrar em países empobrecidos da África ou Ássia, lembrando como 60% da
mortandade mundial do vírus H1N1 se produzira no Oeste da Índia, ao se produzir
umha “sinergia sinistra” com a desnutriçom.
O geógrafo marxista David Harvey, por sua parte, comparte reflexons comuns a
toda a esquerda, como a natureza social das catástrofes naturais (ele já falara
de “terremotos de classe” apropósito do da Nicaragua em 1973 e Cidade de México
em 1995) ou a dura fatura que se está a pagar polas políticas neoliberais no campo
da saúde. Quanto ao impato claramente diferencial segundo a classe (oculta sob
a retórica do “estamos todos juntos nisto”) desta crise, Harvey coloca o
exemplo dessa “nova classe trabalhadora” dos cuidados, feminizada e
racializada, que se está a encarregar da primeira linha de combate ao vírus, e
que junto com as operárias dos centros logísticos estám a ser os setores mais
expostos à infeçom. Mostra-se, igualmente, mui crítico com a agudizaçom das
diferenças de classe que vai supor o teletrabalho.
Segundo David Harvey, uma
nova reativação chinesa da economia internacional é agora impossível.
Quanto à crise económica que seguirá ao surto,
Harvey realiza umha análise comparativa com a de 2007-2008, quando China
resgatara o capitalismo global. Segundo ele, umha nova reativaçom chinesa da
economia internacional é agora impossível. A crise é tam profunda que setores
tam importantes até o de agora para a acumulaçom de capital como o do turismo
internacional (que entre os anos 2010 e 2018 medrou de 800 milhons de visitas
internacionais a 1.400) ficarám paralisados, se bem com um efeito positivo na
ecologia. A chave seria que “a acumulaçom sem fim do capital em forma de
espiral está a derrubar cara dentro”, polo que “se a China nom pode repetir o
seu papel de 2007-8, entom a cárrega de sair da atual crise económica agora
translada-se aos Estados Unidos e aquí está a ironia final: as únicas políticas
que funcionarám, tanto económica como politicamente, som muito mais socialistas
que qualquer cousa que Bernie Sanders poda propor e estes programas de resgate
terám de inicar-se sob os auspícios de Donal Trump, pressumivelmente baixo a
máscara do Making America Great Again”. É dizer, umha saída socialista à crise
baixo outro nome.
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