O fim de uma era. A cidade mais privilegiada de Itália está na
fila para o pão. A partir de Milão, onde vive e está isolado, o escritor
italiano Antonio Scurati escreve o que vê da janela da sua casa.
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25 mar 2020
Antonio Scurati *
A Piazza del Duomo, em Milão, habitualmente repleta de turistas, está deserta há semanas devido à quarentena nacional imposta em Itália
CORBIS VIA GETTY IMAGES
De
Milão, onde vive e está isolado, o professor e escritor italiano Antonio
Scurati escreve o que vê da janela da sua casa.
"Como
posso convencer a minha mulher de que, enquanto olho pela janela, estou a trabalhar?
— perguntava-se Joseph Conrad no início do século passado. Eu, em vez disso,
pergunto-me: como posso explicar à minha filha que, quando olho pela janela,
vejo o fim de uma era? A era em que ela nasceu, mas que não conhecerá, a era do
mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da
Humanidade.
Vivo
em Milão, até ontem a mais evoluída, rica e brilhante cidade de Itália, uma das
mais desejadas do mundo. A cidade da moda, do design, da Expo. A cidade do
aperitivo, que deu ao mundo o Negroni Sbagliato e a happy hour e que hoje é a
capital mundial do Covid-19, a capital da região que, sozinha, soma trinta mil
contágios confirmados e três mil mortos. Uma taxa de mortalidade de 10%, os
caixões empilhados à frente dos pavilhões dos hospitais, uma pestilência
vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades
amaldiçoadas das antigas tragédias gregas.
As
sirenes das ambulâncias tornaram-se a banda sonora dos nossos dias; as nossas
noites são atormentadas por homens adultos que choramingam no sono:
--
O que é, sentes-te bem?
--
Nada, não é nada, volta a dormir.
Milhares
de amigos, parentes e conhecidos tossem até cuspir sangue, sozinhos, fora de
todas as estatísticas e sem qualquer assistência, nas camas dos seus estúdios
decorados por arquitetos de renome.
Se,
neste momento, olhar pela janela, vejo uma pobre loja de conveniência gerida
com admirável diligência por imigrantes cingaleses. Até ontem, era uma singular
anomalia neste bairro semicentral e, ao seu modo elegante, uma nota dissonante.
Hoje
é um lugar de peregrinação. Na fila para o pão em frente às suas vitrinas
despidas, vejo homens e mulheres que até ontem o desdenhavam por não ter a sua
marca preferida de farinha.
Ficam,
apoiados pela disciplina do desânimo, a um metro de distância uns dos outros,
ao mesmo tempo ameaçadores e ameaçados, com máscaras improvisadas, feitas de
pedaços de tecido com os quais, até ontem, protegiam as plantas exóticas do seu
roof garden, gazes desfiadas penduradas nos seus rostos com a melancolia mole
dos restos de uma era acabada.
Vejo
estes homens e estas mulheres tristes, incongruentes consigo mesmos. Olho-os.
Não tenho nenhuma intenção de os diminuir ou de troçar deles. São homens e
mulheres adultos, contudo por cima das máscaras mostram o olhar assustado das
crianças carentes. Chegaram totalmente despreparados ao seu encontro com a
história e, no entanto, precisamente por este motivo, são homens e mulheres
corajosos. Fizeram parte do pedaço mais abastado, protegido, longevo, bem
vestido, nutrido e cuidado da Humanidade a pisar a face da Terra e, agora, na
casa dos cinquenta, estão na fila do pão.
A
sua aprendizagem na vida foi uma longa aprendizagem da irrealidade televisiva.
Tinham vinte anos quando assistiram, a partir das suas salas de estar, à
primeira guerra da história humana ao vivo na televisão, trinta quando foram
alvejados através dos televisores pelo terror midiático, quarenta quando a
odisseia dos condenados da terra aterrou nas praias das suas férias. Todos
encontros fatídicos que não poderiam perder. As grandes cenas da sua existência
foram consumidas em eventos midiáticos, foram guerreiros de sala, banhistas nas
praias dos migrantes, veteranos traumatizados pelas noites passadas em frente à
televisão. E agora estão na fila do pão.
"Uma taxa
de mortalidade de 10 por cento, os caixões empilhados à frente dos pavilhões
dos hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua
catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas. As
sirenes das ambulâncias tornaram-se na banda sonora dos nossos dias"
A
sua infância foi uma mangá japonesa, a sua juventude uma festa de piscina —
lembram-se? Era sábado à noite e íamos a uma festa; era sempre sábado à noite e
íamos sempre a uma festa —, a sua idade adulta é um tributo a uma trindade
insossa e feroz: o frenesi do trabalho, os verões na praia, o sublime do spa.
Viveram bem, melhor do que qualquer outra pessoa, mas quanto mais viviam, mais
inexperientes eram na vida: nunca conheceram o terror da guerra, nunca foram
tocados pelo sentimento trágico da existência, nunca viveram uma questão sobre
o seu lugar no universo. E agora, aos cinquenta anos, com os cabelos já
brancos, o abdómen prolapso e a ânsia que lhes incomoda os pulmões, estão na
fila do pão.
Turistas
compulsivos, correram o mundo sem nunca sair de casa e agora a sua casa marca
para eles os limites do mundo; sofreram quase só dramas interiores e agora o
drama da história catapulta-os para a linha de fogo de uma pandemia global; têm
uma casa na praia e um carro de última geração, mas agora estão na fila do pão;
tiveram mais cães do que filhos e agora arriscam as suas vidas para levar o seu
caniche a mijar.
Olho-os
da janela do meu estúdio enquanto escrevo. Observo-os enquanto o número de
mortes sobe para quatro mil, enquanto o contágio cresce exponencialmente,
enquanto sustenho a respiração para não inalar o ar do tempo. Olho-os e
compadeço-me deles porque foram a geração mais sortuda da história humana, mas,
depois, tocou-lhes viver o fim do seu mundo justamente quando começaram a ficar
demasiado velhos para esperar um mundo vindouro. Porém, terão de o fazer. E o
farão, estou seguro. Vão ter de imaginar o mundo que têm sido obrigados a
experimentar nestes dias: um mundo que se questiona sobre como educar os
próprios filhos, sobre como preservar um ar respirável, sobre como cuidar de si
e dos outros. Uma era acabou, outra começará. Amanhã. Hoje estamos na fila para
o pão. Hoje os jornais titulam: "resiste, Milão!" E Milão resiste.
Lanço
um último olhar pela janela sobre os meus contemporâneos dos cinquenta anos, os
meus concidadãos milaneses, os meus rapazes repentinamente envelhecidos: como
são grandes e patéticos com os seus ténis de corrida e as suas máscaras
cirúrgicas. Tenho piedade, compreendo-os, compadeço-me deles. Dentro de alguns
segundos estarei na fila junto deles."
* Antonio
Scurati - professor de Linguística e Comunicação na Universidade de Milão.
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